Um dos poemas mais instigantes de Ferreira Gullar é, certamente, Não há vagas, de 1963. É assim (já estou dividindo-o em suas estrofes): Primeira estrofe: “O preço do feijão/ não cabe no poema. O preço/ do arroz/ não cabe no poema./ Não cabem no poema o gás/ a luz o telefone/ a sonegação/ do leite/ da carne/ do açúcar/ do pão”. Segunda estrofe: “O funcionário público/ não cabe no poema/ com seu salário de fome/ sua vida fechada/ em arquivos./ Como não cabe no poema/ o operário/ que esmerila seu dia de aço/ e carvão/ nas oficinas escuras”. Terceira estrofe: “— porque o poema, senhores,/ está fechado: ‘não há vagas’”. Quarta estrofe: “Só cabe no poema/ o homem sem estômago/ a mulher de nuvens/ a fruta sem preço”. Quinta estrofe: “O poema, senhores,/ não fede/ nem cheira”.
Tentemos interpretá-lo, estrofe por estrofe. Primeira estrofe: o que significa o verbo “caber”, em “não cabe no poema”? Provavelmente “tema”, “assunto”, “abordagem”, ficando: “não [é tema, assunto ou abordagem do] poema” os seguintes itens: feijão, arroz, gás, luz, telefone, sonegação (grifo meu), leite, carne, açúcar e pão. Artigos de primeira necessidade, materiais imprescindíveis ao cidadão, à sua sobrevivência no cotidiano. Note-se que “sonegação” destoa dos demais itens. Por se tratar de um substantivo abstrato, posto em meio a substantivos concretos, e contendo um conteúdo de ordem moral. “Sonegar” pressupõe “furtar”, “fraudar”, “desviar”. Neste caso, tema ou assunto por excelência, pois diz respeito à saúde financeira do Estado, a prejuízo ao erário público. Numa palavra, diz respeito (como, reitere-se, os demais artigos apontados) à vida de todos. Portanto, é algo muito sério, que mereceria uma abordagem do poeta. Mereceria caber no poema. Assim, já se percebe o tom irônico do texto. Ainda na primeira estrofe, tem-se um ritmo liberado, irregular, as vírgulas de todos os versos são extraídas, o que já insere o texto no Modernismo; o verbo caber (sempre ele!) aparece em posição invertida (em “Não cabem no poema o gás/ a luz o telefone…”), ganhando destaque, tendo seu sentido intensificado. Há ainda a estrutura em paralelo dos versos finais (em “do leite/ da carne/ do açúcar/ do pão”), com a anáfora da preposição “de” contraída cadenciando a enumeração dos itens.
Segunda estrofe: aqui são destacados dois sujeitos, que também não cabem no poema: o funcionário público e o operário. O primeiro, com seu “salário de fome” (salário baixo, miserável, pouco), tem a “vida fechada/ em arquivos”. Aqui, no enjambement, a ambigüidade: vida em recinto com janelas e portas cerradas, portanto, insalubre, impróprio? ou vida burocratizada, sendo o funcionário apenas um número nos fichários estatais? O operário, por sua vez, ao esmerilar (ou friccionar) o seu “dia de aço” (dia duro, difícil) nas “oficinas escuras”, e embora com um trabalho tão indispensável à sociedade, fica na sombra, é a imagem ou metáfora da invisibilidade. Enfim, pela importância social de ambos, pela vida que levam, não mereceriam, funcionário e operário, também ser assunto do poema? Prossegue o tom irônico do texto.
Terceira estrofe: agora, ao modo de uma justificativa dirigida a gente solene (a poeta solene?), diz-se primeiro: “— porque o poema, senhores,/ está fechado”. Intui-se (e a ironia intensifica-se) que, se o poema “está fechado”, é porque está insensível, indiferente à vida e suas necessidades, ao homem e sua labuta. Aí vem a expressão que dá título ao poema: “Não há vagas”. Expressão típica do mundo do emprego, das relações patrão e empregado, indica falta de oportunidade. Ora, o que o poeta quer dizer, e em consonância com o teor irônico das estrofes anteriores, é que não é oportuno para a poesia ter como assunto as questões do dia-a-dia. Cabe a pergunta: não é oportuno para qual poesia? Para a do poeta? Para a da época em que foi composto o poema? Ou para a de poetas de períodos passados (os parnasianos, por exemplos, que se fechavam para os temas cotidianos)? Parece que sobretudo à poesia, do passado e do presente, que foge (ou aliena-se) dos dramas diários.
Quarta estrofe: aqui assevera o poeta que três coisas cabem no poema (ou na poesia que se fecha para a vida diária): o “homem sem estômago”, isto é, aquele, remediado ou rico, cujas preocupações não se voltam para as questões básicas de subsistência; a “mulher de nuvens”, ou seja, a mulher idealizada, objeto de abstração, e não, por exemplo, a dona de casa, imprensada no seu dia-a-dia; e a “fruta sem preço”, ou melhor, aquela apenas admirada nas formas, se exposta na obra de arte (por isto mesmo cabendo no poema), e não aquela comprada/negociada nos tablados da feira.
Quinta estrofe: agora vêm os versos finais, que afirmam: o poema “não fede/ nem cheira”, isto é, ele — o poema que apenas idealiza a vida — tanto faz existir ou não, é indiferente. Conclusão: Não há vagas, como foi indicado, se refere sobretudo à poesia, do passado e do presente, que se fecha à ordem do cotidiano. O texto, assim, com esse andamento metalingüístico, com o poema que discute a própria poesia, parece se tecer também como uma poética do autor. Ao se discutir o fazer poético, está se discutindo — embutido no texto — o sentido ou mesmo a função da poesia — para quê, e para quem, ela serve. O poema, assim, se tecendo como uma poética do autor, uma poética marcadamente modernista, e ironizando os poetas indiferentes à vida, ao cotidiano das pessoas comuns (como os parnasianos, por exemplo), traz o seguinte recado: a poesia não deve se furtar às questões sociais. Nela cabe, sim, há vagas para os dramas diários. Portanto: o sentido verdadeiro do poema é o contrário do que nele é dito.