Ao vencer, com o livro Linha férrea, o 1.o Prêmio Redescoberta da Literatura Brasileira — promovido pela revista Cult em 2000 —, Tércia Montenegro se consolidou como uma das principais contistas brasileiras contemporâneas. Não pelo prêmio em si, que certamente foi muito importante para a cearense de Fortaleza, mas pelo valor mesmo do trabalho da escritora. O conto que dá título ao seu livro é primoroso. Zelo, amargor, decadência, cobiça, morte — tudo misturado numa narrativa de pouco mais de duas páginas. São dois personagens: um velho tetraplégico e um adolescente. O velho, “estranha carcaça”, braços e pernas “inúteis”, “olhares cheios de fúria”, dá ordens constantes, “em voz alta”, ao adolescente, um filho adotivo (conhece-o criança, “magro e sujo”, próximo a uma ferrovia). O velho, “cabeça aflita” e “corpo indiferente”, possui uma fortuna em dinheiro e terras, mas não tem herdeiros. O adolescente, que faz a comida, a barba e dá banho no outro, se sente “distante da velhice”. Cuidando do pai, está preso, impedido, de certo modo, de ir e vir. O velho vê no rapaz tudo aquilo que não pode mais ter, a juventude e a saúde, a vida pela frente e a possibilidade de desfrutá-la. Daí a raiva, a rispidez com o rapaz, que, no entanto, calado, cumpre com suas obrigações: “Escovava os dentes do boneco de carne, penteava o cabelo escasso”. E um curioso pacto se estabelece. Para manter o jovem ao seu lado na casa (de jardim “quase morto, repleto de folhas secas”), para ter a proteção do rapaz, o velho usa de um artifício: acende-lhe a cobiça. Assim: “Certa vez mesmo disse o valor de seu testamento, incentivou o filho a falar, e foi das poucas vezes em que o rapaz conversou com ele. Os olhos então ficaram alegres — o seu menino fazia planos, ia comprar um carro belíssimo, hein? E uma fazenda, que tal? O dinheiro dá e sobra. Fazendona cheia de bichos. E viagens — poderia viajar para onde quisesse, sair daquele fim-de-mundo. […] O rapaz chegou a rir, excitado pelos projetos. Dava palmadinhas na coxa do velho, que também se exaltava, esticando o pescoço. Ainda falaram de bebidas e mulheres, parecendo antigos companheiros de bar, até que o homem tossiu uma, duas vezes — e se calou. Depois o olho ficou novamente sério, a voz agravou-se: — Mas isso tudo, eu lhe digo, só depois da minha morte. Até lá, você fica comigo, é sua obrigação”. O velho aqui, portanto, está propondo: você cuida de mim, nesses dias que me restam, e terá como garantia à frente usufruir a minha fortuna. Ou seja, oferece um prazer, mas prorroga-o. Não permite o gozo que a ele não é possível. O menino, despertados os desejos de posse (“dinheiro, terras, viagens — por que o velho foi falar”), não resiste ao passar lento dos dias do outro. De protetor passa a assassino: uma noite, amordaça o pai, carrega-o na cadeira de rodas e o deita na linha férrea para ser esmagado pelo trem. Um texto rico em nuances humanas, denso, cruel, como parece ser próprio do olhar dos bons contistas. Um índice interessante, muito inventivo do ponto de vista literário: a coluna do velho, diz o médico mostrando o raio X após o desastre, parecia uma “linha férrea desativada”. A mesma linha férrea perto da qual o velho conhecera o menino — e onde, afinal, ocorre o assassinato.