A ideologia do narrador

No romance “A festa”, de Ivan Ângelo, por meio de vários fragmentos, misturando ficção e documento, o narrador busca o efeito de verdade histórica
Ivan Ângelo, autor de “A festa”
02/11/2020

O narrador é uma categoria muito importante e interpretável no texto narrativo. É interpretável o seu ponto de vista ou cosmovisão — decorrente do modo como ele enquadra as situações do enredo. Por exemplo, no capítulo Documentário (sertão e cidade, 1970), primeiro do romance A festa, de Ivan Ângelo, os vários fragmentos, misturando ficção e documento, tem um motivo de ser: o narrador quer dar um efeito de verdade histórica ao seu relato. Por isso ele se utiliza de documentos, de trechos extraídos de livros de história, de jornais, etc. É algo que gera no leitor uma credibilidade na narração. E o narrador busca esse efeito de verdade histórica com que objetivo? Para tentar sensibilizar o leitor para a situação vivida pelo personagem Marcionílio de Mattos. E que situação é essa? A que conduz à morte do personagem após uma tentativa de fuga de uma delegacia do DOPS. Marcionílio é morto por agentes do Estado. Ele que liderou em Belo Horizonte uma rebelião de nordestinos desamparados. Ele que, como outros líderes que defenderam os miseráveis nordestinos na História (líderes que o próprio capítulo do romance enumera), é tirado de cena, tem sua ação refreada pelos poderosos. E fica no leitor do capítulo uma interrogação: mas não era uma ação oportuna, digna, humana, que buscava acolher ou mesmo corrigir uma injustiça com pessoas tão carentes? Por que tal ação, repita-se, humana, digna, foi violentada, brutalizada pelas forças do Estado? O leitor poderá ficar reflexivo, meditativo, e, mesmo, com um sentimento de injustiça acerca do que foi narrado. Poderá se humanizar quanto ao problema da pobreza/carência histórica do nordestino — e, assim, entender melhor a revolta liderada por Marcionílio. Aqui reside o ponto principal da ideologia do narrador — daquilo que ele quer transmitir para o leitor. Portanto, em Documentário, a questão não fica apenas na técnica narrativa, na fragmentação proposta, e de modo experimental, pelo escritor. É muito importante interpretar o sentido ou a mensagem que está por trás da narração.

Rinaldo de Fernandes

É escritor e professor de literatura da Universidade Federal da Paraíba. Autor de O perfume de Roberta, entre outros.

Rascunho