Bestiário, de Julio Cortázar, é composto basicamente de 9 cenas. Comento-as aqui, uma por uma, levando em conta a construção de cada um dos principais personagens do célebre conto. CENA 1: A abertura do conto, o momento em que a mãe da menina Isabel recebe o telefonema dos Funes (faz-se o convite para que a menina passe as férias de verão na estância de Los Horneros). O primeiro monólogo de Isabel no quarto, misturando imagens recentes com lembranças de sua última visita, há três anos, a Los Horneros (nas quais, além de Nino, avulta a figura agradável de Rema). A viagem de trem de Isabel, as imagens do interior do vagão misturadas com a paisagem exterior e — sempre — lembranças. A chegada ao quarto em Los Horneros. Aqui, predomina a técnica do monólogo interior. O interesse do narrador é caracterizar a interioridade da protagonista Isabel. Uma interioridade intrincada, convulsa, com sentimentos contraditórios (contentamento e medo, sobretudo). CENA 2: Traz uma chave importante de interpretação do conto. Nela é descrito o modo como a família Funes — e agora com a presença de Isabel — se distribui na mesa à hora das refeições: “Luís na cabeceira, Rema e Nino de um lado, Nenê e Isabel do outro, de modo que havia um adulto na ponta e dos lados um pequeno e um adulto”. A ceia e todo o simbolismo dela são explorados nesta cena. O intertexto bíblico é visível. Lendo a cena nos vem à mente o quadro A última ceia, de Leonardo da Vinci. Neste quadro, sabe-se, Da Vinci registra um relato bíblico (João, cap. 13, vers. 24) — o momento em que Cristo anuncia, em sua última ceia, que um dos apóstolos o trairá. O quadro configura as várias reações dos apóstolos após o anúncio de Cristo. Reações entre estupefação, incredulidade e dúvida. No conto de Cortázar a mesa onde se reúne a família Funes lembra a mesma simetria da ceia do Senhor como retratada por Da Vinci. Um na cabeceira e, de cada lado, quantidades iguais de comensais. Um na mesa irá “trair” ou transgredir as regras ou códigos de Los Horneros — a menina Isabel, que, com sua falsa informação ao final do conto, matará Nenê, mandando-o para a boca do tigre. O anúncio (estupefato) da traição será feito por Luís, personagem dócil, resignado, que está à cabeceira — e, portanto, se visto de uma perspectiva frontal, se encontra, como Cristo, no centro da mesa. A ceia, assim, tem uma centralidade no conto, repetindo-se no desfecho, no momento mais dramático, em que Nenê é devorado pelo tigre por artimanha de Isabel. A técnica narrativa aqui, diferente da primeira cena, alterna uma voz em primeira pessoa (trechos das cartas que Isabel escreve à mãe — entrecortados como se sugerindo uma autocensura, talvez condicionada pela presença repressora e raivosa de Nenê na casa) e uma outra em terceira pessoa (o narrador de terceira pessoa predomina no conto, aderindo amplamente ao ponto de vista de Isabel — daí os monólogos interiores exclusivos dela).