Abordando as cenas finais do conto Bestiário, de Julio Cortázar. CENA 6: Descreve os cuidados dos moradores de Los Horneros com relação aos passos do tigre na estância. Os cuidados do capataz, Dom Roberto. A grande confiança que Luís deposita nas informações dele. A necessidade de os membros da família também se comunicarem entre si, de estarem sempre vigilantes. Daí Isabel — que num primeiro momento não ganha tanta confiança, por ser mais jovem que Nino (portanto por parecer mais infantil) — também cumprir as regras da casa, adquirindo com os dias, e do mesmo modo que Nino (sempre “grudado às saias” dela), a necessária confiança dos demais. É uma cena importante, pois Isabel — que nunca quer “passar por boba”, sobretudo aos olhos de Rema — é chamada agora para uma responsabilidade: a de, reitere-se, atentar cotidianamente para os passos do tigre. CENA 7: Traz a carta de Isabel à mãe. A descrição de seu cotidiano em Los Horneros. As brincadeiras, o herbário (“muito grande”) que ela faz com Nino. O mais importante da carta: o modo como a menina interpreta o temperamento dos Funes (Rema triste; Luís bom, mas também triste). O perigo que representa o tigre, a ação vigilante de Dom Roberto (e até a aflição deste quando uma tarde quase se engana com relação à localização do animal). Isabel silencia na carta alguns dados importantes — o principal deles é que Rema “chora à noite”. Há ainda o diálogo que a menina ouve entre Luís e Rema sobre, muito provavelmente, Nenê (em que Luís afirma: “É um miserável, um miserável…”). CENA 8: Descreve o pouso do grande gafanhoto na toalha da mesa. A presença do bicho provoca reações adversas: Rema tem nojo, repulsa (acha-o “horrível”); Luís, o ar de estudioso, considera o inseto “um belo animal”, atentando no girar de cabeça dele (“É o único inseto que gira a cabeça”) — daí um certo mistério na fala do personagem; Nino, à maneira do pai, quer preservar o inseto para estudo (“Amanhã a gente pode botá-lo no formicário para estudar”); Nenê, entediado, não se importa com a presença do gafanhoto (“Que droga de noite” , comenta). A reação de Isabel é diferente da de todos — “teria preferido decapitar o gafanhoto”. Uma reação que, certamente, complementa a repulsa de Rema. Há uma afinidade na reação das duas. A agressividade de Isabel vem como outro índice importante, remetendo à violência da cena final — a qual será engendrada pela menina. CENA 9: Cena final do conto. Hora do almoço, todos reunidos. É o momento em que Isabel, ferindo (ou traindo) os códigos da casa, dá uma informação errada a Nenê, dizendo que o tigre se encontra no escritório deste, quando na realidade está na biblioteca. Nenê então, de posse da informação falsa, segue para a biblioteca — e é pego pelo tigre. A distribuição dos membros da família na mesa é a mesma descrita na cena 2, com Luís à cabeceira (à maneira de Cristo na última ceia). E é Luís quem irá dizer quem “traiu” (as regras/códigos da casa), quando anuncia: “Mas estava [o tigre] no escritório dele [de Nenê]! Ela [Isabel] disse que estava no escritório dele!”. Isabel provoca deliberadamente o engano. Empurra Nenê para as garras no tigre, enquanto é acalmada (e silenciosamente aclamada) por Rema. Isabel, numa “desfigurada alegria”; Rema, num “balbuciar como de gratidão”. Os caracóis, sobre os quais as duas se voltam no instante em que Nenê é agarrado, talvez remetam (metalinguisticamente) à própria estrutura em ziguezague do conto. Um conto que dá voltas para trazer um desfecho dos mais surpreendentes e originais na história da literatura.
P.S.: Uma análise mais detida da simbologia dos principais animais que aparecem no conto (as formigas, o gafanhoto, os caracóis e o próprio tigre) é tarefa para um outro comentário.