A ditadura num conto de Verissimo

Uma narrativa sobre a derrota de uma geração que apostou em mudanças
Luis Fernando Verissimo, autor de “O melhor das comédias da vida privada”
01/04/2023

O longo conto A mancha (2004), de Luis Fernando Verissimo, integra a coleção Vozes do golpe, publicada pela Companhia das Letras. Tem como protagonista Rogério, que foi torturado pelo regime de 64. Com o fim da ditatura, e de volta do exílio, Rogério torna-se empreendedor, enriquecendo no ramo imobiliário. Compra, reforma e vende prédios. Num de seus passeios para verificar prédios negociáveis, identifica, perplexo, um no qual sofreu tortura — identifica inclusive a mancha de seu sangue num dos compartimentos do prédio. No conto, outro personagem importante é Rubinho, que também foi torturado. Foi amigo de Rogério nos tempos difíceis da repressão, mas tem uma perspectiva diferente dos fatos. Pode-se afirmar que Rogério e Rubinho ficaram traumatizados com a tortura. Rogério, o personagem mais denso da trama, e mesmo enriquecido, quer reaver a memória, entender os detalhes do que se passou com ele. Rogério se esforça para não matar o passado. Rubinho, ao contrário, faz do trauma um esquecimento. Fecha-se para a memória do sofrimento, dos desgostos. Mas como no presente tem propósitos e/ou valores ligados ao agronegócio (quer, aposentado, plantar maçãs), o esquecimento de Rubinho pode significar também menos um trauma e mais a perspectiva de quem assimilou plenamente uma ideologia que no passado combateu. O conto é sobre a derrota de uma geração que apostou em mudanças, mas que foi engolida pelas forças conservadores, pelos valores do capital. E por essa via a narrativa faz uma leitura primorosa da elite brasileira, inclusive, ou sobretudo, da que dá suporte ao bolsonarismo. Rogério convive com pessoas extremamente conservadores (familiares de sua esposa), com valores segregacionistas fortes — pessoas entre as quais identifica no passado um complô com os ditadores. Há na trama uma metáfora vigorosa, a do condomínio fechado, explicativa do modo de ser da elite que apoiou a ditadura e agora apoia a extrema direita. Essa metáfora, identificando a perspectiva presente de Rubinho, a de se fechar em si mesmo para apagar ou, estrategicamente, desautorizar os fatos vividos, o seu envolvimento com a resistência à ditadura, é extensiva ao modo de ser da elite brasileira. Rubinho diz para Rogério, quando este busca reaver com o antigo amigo a memória da tortura: “Meu filho, o Sidnei, está tentando me ensinar a lidar com o computador. Ele sabe tudo, eu não consigo aprender. E ele me disse por quê. Disse: ‘Pai, você tem uma mente defensiva’. É exatamente isso. Desenvolvi uma mente defensiva como um condomínio fechado. Uma mente com guarita, que abate qualquer inimigo na porteira. Novas técnicas, lembranças, ideias, tudo que possa perturbá-la e solapar sua burrice assumida, é abatido na entrada”. Eis uma leitura precisa da mentalidade de nossa elite sob o bolsonarismo, que presentifica valores de um passado que, para ela, não morrem. E a força dessa permanência, a reatualização desses valores no Brasil atual, termina sendo sufocante no conto de Luis Fernando Verissimo.

Rinaldo de Fernandes

É escritor e professor de literatura da Universidade Federal da Paraíba. Autor de O perfume de Roberta, entre outros.

Rascunho