Há alguns meses (edição de 21/10/2007), no caderno 2 do Estadão, saiu uma boa entrevista de Luiz Zanin Oricchio com a professora Beatriz Jaguaribe, da UFRJ, que lançou pela Rocco O choque do real: estética, mídia e cultura. Neste livro, ela defende a tese de que ressurge com força um fenômeno: o cinema (sobretudo), a literatura e outras artes retomaram o realismo estético, ou o “choque do real”, como uma das manifestações mais importantes da cultura globalizada (a expressão “choque do real” é assim definida pela professora: “a utilização de estéticas realistas que visam a suscitar um efeito de espanto catártico no espectador ou leitor”). Seria esse o motivo de filmes como Cidade de Deus e especialmente Tropa de elite fazerem tanto sucesso (Tropa de elite, como todos sabem, gerou muita polêmica em torno da perspectiva narrativa adotada). Na entrevista são citados autores como Paulo Lins, Patrícia Melo, Marçal Aquino, além de Ferréz, como os principais representantes recentes da literatura brutal no Brasil. Concordo em parte. Um conto como A cabeça, de Luiz Vilela, vale por toda uma série de textos de brutalidade, não só pela (mais que insólita) situação narrada mas também por sua alta qualidade estética, notadamente a costura dos diálogos. A matriz narrativa dos (bons) autores citados são certamente os textos de Rubem Fonseca. Paulo Lins, Patrícia Melo, Marçal Aquino e Ferréz são — algo não muito difícil de perceber — epígonos do autor de A coleira do cão, Feliz ano novo, Passeio noturno, O cobrador, entre outras obras-primas da literatura brutal. Nos contos de Rubem Fonseca, que privilegia a primeira pessoa, vale especialmente a tessitura do narrador, o ponto de vista violento (e incrivelmente verossímil) adotado por ele. A cabeça, escrito em terceira pessoa, é um conto que, no que se refere à vertente violenta, ao que tudo indica, não tem matriz em nossa literatura. É original. E sua originalidade, ao invés do narrador, reside especialmente na profunda ironia dos diálogos. Isto é um achado de Vilela (e o diálogo é, certamente, um dos recursos mais notáveis desse autor — é só conferir, nesse sentido, a novela Bóris e Dóris, de 2006). Manhã quente de domingo. Uma rua de um bairro distante do centro. Aí é encontrada uma cabeça humana. Logo se juntam em torno dela alguns populares — “o homem de terno e gravata”, “o da bicicleta”, “o baixote”, “o gordo”, “o barbicha”, “a moça”, “a ruiva”, “dois meninos”… A cabeça do morto desconhecido é, de repente, identificada pela “moça” como sendo a de uma conhecida — “A Zuleide lá do salão”. Mas a sua amiga, a “ruiva”, rejeita a hipótese: “Que isso, menina? Você está é doida!”. O conto (exemplo primoroso, em certos passos, da chamada função fática), cujas falas vinham se tecendo em torno de questões como o odor dos defuntos, Deus, o homem, a vida (“Deus uma cagada, o homem uma cagada, a vida uma cagada”, resume em determinado momento um dos personagens), passa então a se desenvolver em torno da questão de gêneros, pois um dos curiosos ali presentes, “o gordo”, acredita que o crime envolveu adultério: “A mulher estava chifrando o cara, e aí ele — sssp!…” (“sssp!” é o gesto de cortar a cabeça, conforme indica o narrador). A reação da “ruiva”, preocupada com a reputação feminina, é intempestiva: “Como você pode falar uma coisa dessas sem saber de nada?”. Homens e mulheres, a partir daqui, tornam mais tensos os diálogos (em que é visível a carga machista e preconceituosa da fala dos homens). No final, os meninos ficam imaginando uma bola da cabeça. Um diz: “Dá vontade de dar um balão”; o outro emenda: “Aí eu corro lá pra frente e mato no peito”. A brutalidade de nossas relações está em tudo no conto de Vilela. Está na cabeça cortada e atirada na rua. Nos diálogos, repita-se, beirando o deboche, e tão espontâneos, dos populares. No choque de uma visão masculina das coisas com uma visão feminina. Na forte ironia do narrador, que expõe tudo isso com uma sutileza tal, que termina nos assombrando e exigindo, inevitavelmente, uma reflexão acerca da natureza da violência que nos cerca. E a ironia, no caso, torna-se talvez a forma mais eficiente de abordagem de questão tão grave de um tempo.