Em 2009 completam-se 100 anos da morte de Euclides da Cunha. Há os que desconfiam que um “mistério” continua a dominar tanto Os sertões quanto o fato que o motivou. Que mistério seria esse? Talvez nenhum. Euclides produziu seu texto foi por uma profunda necessidade de escritor mesmo. Quem escreve sabe que há um fator inconsciente no processo. Nesse sentido, pode-se falar em “mistério” — já que é difícil descrever com precisão o inconsciente de um indivíduo. Assim, podemos especular sobre várias questões que motivaram Euclides a escrever a sua principal obra. Se feito com seriedade e espírito científico, acho que isso pode ajudar a compreender facetas do escritor, do seu processo criador. Aliás, ajuda a compreender melhor o processo de qualquer escritor. Mas vejo Euclides mais como um escritor que, tocado profundamente por uma injustiça que testemunhou (o massacre dos canudenses pelo Exército), buscou, amparado em ampla pesquisa, expressar uma opinião sentida sobre um acontecimento crucial da nossa República. Aí, penso, reside um núcleo importante que desencadeou o processo de construção do livro. Agora, no que se refere à própria Guerra de Canudos, acredito que também não há “mistério” quanto à sua origem — o incidente que a motivou (o atraso, por parte de um comerciante de Juazeiro (BA), na entrega da madeira para a construção da Igreja Nova de Canudos, que estava sendo erguida por Antônio Conselheiro e seus seguidores) tem raiz num certo tipo de relação que é estrutural na sociedade brasileira, ou seja, a do público sendo confundido com o privado. O juiz de Juazeiro que, pedindo providências junto a Luiz Viana, então governador da Bahia, terminou por influenciar na Primeira Expedição contra Canudos (foram quatro até o final da Guerra) era, como se sabe, desafeto do Conselheiro e ligado ao Barão de Jeremoabo, proprietário de cerca de 60 fazendas na região do conflito. Lembremos que a Igreja e a oligarquia (os coronéis da região baiana) foram as principais responsáveis pelas expedições contra os canudenses (o livro O Império do Belo Monte: vida e morte de Canudos, da professora Walnice Nogueira Galvão, aborda essa questão de forma bem didática). A posição contrária delas foi decisiva para desencadear um dos maiores massacres ocorridos na nossa história. Parece-me, portanto, que não há tanto mistério nisso — trata-se de um fato histórico que tem raiz no choque de interesses. Tem a ver, em última instância, com interesses de classes — se ainda se pode falar assim… Quanto ao caráter literário de Os sertões: o falecido professor Roberto Ventura, da USP, que foi muito cordial comigo quando organizei em 2002, para a Geração Editorial, O clarim e a oração: cem anos de Os sertões, fez uma das mais felizes avaliações que conheço do caráter literário de Os sertões no seu ensaio Euclides da Cunha no Vale da Morte, que consta do livro. Ventura faz entradas muito felizes em Os sertões, vendo-o na sua dimensão barroca (na qual o uso do oxímoro é uma das marcas principais do autor fluminense), no recurso à ironia; tenta também mostrar a permuta entre uma visão trágica e uma outra cômica da História no livro de Euclides. Do ponto de vista da teoria e da crítica literárias, são elementos muito interessantes. Esse ensaio traz matrizes muito importantes, senão as principais, para um estudo mais vertical da natureza literária da obra de Euclides. Mas, no livro que organizei, há ainda outros trabalhos ricos que remetem a essa questão, como o de Luiz Costa Lima, o de Haroldo de Campos (sobretudo na sua parte inicial), o de Miram V. Gárate, entre alguns outros. Por outro lado, Euclides da Cunha afirma, em certo momento de Os sertões, que “o sertanejo do Norte é, inegavelmente, o tipo de uma subcategoria étnica já constituída”. Dá para concordar com essa afirmação? Não, evidentemente. O aspecto menos consagrado hoje do texto euclidiano é o seu determinismo, as teorias raciais em que ele se fundamentou. De qualquer modo, era a ciência do período do escritor, a qual foi decisiva na sua formação, na sua fase de Escola Militar. De minha parte, penso que não há raça superior ou inferior. O que há são condicionamentos históricos que levam determinados povos a progredirem mais do que outros. Progresso decorrente, em boa medida, de várias violências.