Vendo os Beatles!

Affonso Romano volta à Los Angeles de 1966 para narrar o show dos... Beatles?
“Cada aceno, cada movimento, por mais simples, era motivo para berreiro, desmaios e choros.”
01/11/2011

(1966 – Los Angeles)
1. Então, lá fui ver os Beatles. Comprei ingresso no câmbio negro a oito dólares e lá pelas tantas da tarde me aproximava do Dodger Statium, encostava o carro entre milhares de outros e começava a andar no meio daquela multidão de adolescentes: eu, um carioca estudante aqui e duas brasileiras.

2. Então, me lembrei logo de Jesus Cristo, pois era domingo à noite e um dos Beatles tinha dito dias antes que eles eram mais influentes do que qualquer igreja cristã. Esta afirmação já foi bastante explorada e eles foram chegando aqui e explicando a coisa de uma maneira mais suave, dizendo que não era de Cristo, mas da igreja, que falavam. De qualquer maneira, ao que sei, somente um jogo entre os Dodgers e Giants ou uma série de conferências do pastor Billy Grahan pode atrair tanta gente.

3. Mas a gente que lá foi não era bem gente, era ameaça. Não posso dizer que eu era o mais velho do estádio, mas certamente um dos mais. O resto — e que maravilha de resto — era uma meninada lindíssima entre os dez e dezessete anos. (Desnecessário dizer que abaixo de dez tinha também muita gente).

4. O estádio é em forma de V. Estava apinhado. Nunca em minha vida vi tanta gente bonita junta. Tão bonita quanto extravagante. Aquilo foi uma espécie de dia de desfile de adolescentes. Cada um queria se mostrar mais original, mais cabeludo, com as cores mais violentas. Quase todo mundo com binóculos e milhares de câmaras com flashes.

5. Então, lá pelas tantas, quando ia escurecendo, entraram uns quatro cabeludos no campo. Pessoas começaram a gritar de todos os lados. Equívoco. Não eram eles, era um outro conjunto, os Remains, que foram ao tablado e rebolaram com as guitarras elétricas por meia hora. Depois um outro conjunto — The Cyrekes — o mais popular do país. Depois ainda mais cantores, disque-jóqueis, gente de TV e rádio.

6. De outro lado do estádio tinha um pouco de adolescentes cegos que foram aplaudidos pelo locutor e aplaudidos pela adolescência em flor.

7. Aí a coisa estava para começar de fato. Começou. Um luminoso eletrônico fez a apresentação dos Beatles e eles saíram lá do túnel do estádio, que nem time no Maracanã. Aí foi aquela gritaria, mas tanta gritaria, que tive que tapar os ouvidos até me acostumar mais um pouco.

8. E eles sobem lá no tablado e começam a tocar, espernear, cantar e acenar para a platéia. Cada aceno, cada movimento, por mais simples, era motivo para berreiro, desmaios e choros.

9. Por todo o estádio flashes adolescentes estourando, faixas com os nomes deles, todo mundo acenando com álbuns, fotos, outros com lenços imensos como lençóis. A maior faixa de fã-clube era de Dallas.

10. De repente um grupo de adolescentes irrompe de uma área onde não havia ninguém assentado, pulando o muro, descendo pelas paredes e caindo no gramado. A polícia dispara correndo na direção deles, e eles correndo pra cima da polícia, em direção ao tablado. Aí quase o estádio veio abaixo. A polícia catou um por um os adolescentes cabeludos e quando os trazia de braços torcidos pelos túneis o público vaiava a polícia. Um policialzinho gordinho recebeu uma chupetada de laranja naquele justo lugar.

11. Muitos dos choros e gritinhos eram pura imitação do que se viu no cinema. Tinha uma menina de uns quatorze anos na arquibancada sobre a minha quase a despencar, mordendo as mãos e a grade de apoio, esfregando o rosto, e mais se empenhou na performance quando descobriu que o público a descobrira também.

12. Pois os meninos cantaram só meia hora. A gente só ouvia o nome da música. O resto era impossível. De repente o show acabou. Eles não avisaram que era o último número (nem podiam, imaginem! a garotada ia invadir o campo, comê-los vivos).

13. Pois eles terminaram o número, desceram, entraram numa imensa tenda atrás do palco. De repente, dois impalas saem de dentro das tendas em direção a um dos portões. Eram eles que fugiam do massacre se demorassem lá um pouco mais.

14. Foi aquele susto-surpresa. Susto-surpresa que dobrou quando daí a três minutos os mesmo portões se abriram e os carros voltaram de marcha à ré: tinha uma multidão lá fora pior que a de dentro do estádio. O carro (só um, o outro sumiu) entrou no gramado outra vez e parou na boca do túnel. Daí por diante foi o locutor implorando pelo amor de tudo quanto era sagrado para saírem todos do estádio porque senão seriam presos.

15. Pra mim os Beatles só saíram de lá na manhã seguinte. Ou saíram disfarçados. Aliás, não sei bem se saíram, nem sei se foram eles mesmos que cantaram: não ouvi nada, estavam relativamente longe par serem identificados e o barulho não deixava. Também naquelas alturas, já a ninguém interessava se eram eles ou não: o negócio não era assistir ao espetáculo, o negócio era ser o espetáculo.

Affonso Romano de Sant'Anna

É poeta, cronista e ensaísta. Autor de Que país é este?, entre outros. A coluna Quase diário foi publicada no Rascunho até fevereiro de 2017.

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