Shirley, Green Morton, Juruna e Cora

A bordo do avião para Madri, anoto coisas recentes: fui ver Sonho de uma noite de verão, direção de Werner Herzog
Cora Coralina
01/04/2010

15.06.1992
A bordo do avião para Madri, anoto coisas recentes: fui ver Sonho de uma noite de verão, direção de Werner Herzog e produção de Lucélia Santos. Presente, além do Herzog, a notável Shirley MacLaine, com quem conversei, por uma razão muito rara e estranha: ela dá grande espaço nos seus livros esotéricos a Mauricio Panisset, que conheci na adolescência em Juiz de Fora e que era um sensitivo incrível. Ela era encantada com ele. Ali no Teatro João Caetano não estava muito bonita, meio mal-vestida, tinha pouco daquela atriz charmosa que dançava e acontecia. Estava acompanhada de Ana Maria Sharp e do senador Hydekel de Freitas, seu anfitrião, que segundo Ana MariaTornaghi descobriu o mundo dos espíritos.

No meio do espetáculo (eu ali com Marina), senti um forte e doce perfume no ar. No intervalo, Eduardo Conde veio me mostrar o fenômeno que ocorria, nos fazia cheirar sua mão e a de um amigo, era dali que vinha o perfume. Ou melhor, aquilo era desencadeado pelo Thomas Green Morton — o mago do interior de Minas que estava deflagrando suas essências com a sua simples presença no teatro.

06.08.1984
“Resultado político da conferência que fiz há dias para os 300 altos funcionários e diretores de Furnas: Cristina Bomfim, do Departamento de Recursos Humanos, me informa hoje que um tal Cotrin foi ao presidente de Furnas denunciar este tipo de conferência dizendo que se soubesse que eu era o autor daquele artigo publicado no JB — A preguiça do presidente —, não deixaria eu falar”.

Resultado: foi interrompido o ciclo de palestras. Daqui para frente só palestras técnicas. E o que é mais danoso: todos os diretores adoraram. Disseram que era disso que precisavam mais. Pelo que se vê, a censura e o regime continuam funcionando como antigamente.

04.03.1981
Recebemos (aqui em Aix-en-Provence) longa carta de Drummond em resposta a uma outra não menos longa que lhe enviamos. Mais aberto, deu algumas opiniões raras, inclusive sobre o meu livro a respeito dele (que está sendo traduzido para o inglês por Randal Johnson). Aliás, fiz, a pedido do professor Claude-Henry Freches, um texto explicativo sobre a obra de Drummond, texto que seguiu para a Academia Sueca, pretendendo o prêmio Nobel para o poeta. Se der certo (pois Freches é um dos que sugerem nomes à Academia), Drummond seria um carro-chefe para a literatura brasileira no exterior.

25.08.1980
Participamos, Marina e eu, do I Festival de MPB/80 patrocinado pela TV Globo. Fomos às três eliminatórias nos meses que passaram. Era um júri de 200 pessoas: intelectuais e donas de casa. A final foi ontem no Maracanãzinho. Umas 30 mil pessoas numa zoeira danada (…) O nível das músicas era fraco. A mais original era Nostradamus de Eduardo Dusek em que ele aparece trajando smoking, mas com asas brancas de anjo; música e letra inventivas.

Nos intervalos, o povo em massa gritando o slogan que virou moda desde que Figueiredo foi vaiado pelos estudantes em Florianópolis: “Fi-guei-re-do, Fi-guei-re-do, Fi-guei-re-do! Vai-pra-puta-que-o-pariu”.

02.10.1984
Da Fundação Centro de Formação do Serviço Público/Brasília estão me convidando para abrir conferência sobre “Planejamento governamental”, onde estariam Roberto Campos, Esperidião Amim e outros ministros. Fiz-lhes ver que isto era um erro essencial de pessoa. Não é meu ramo.

A Câmara Municipal de Salvador transcreveu em seus anais o artigo que publiquei na Folha de S. Paulo: Três tapas na cara.

09.11.1981
Em Goiás Velho, cheia de casas como a antiga Ouro Preto, encontro Cora Coralina. Experiência: ver essa mulher de 94 anos, poetisa, personalidade vigorosa entre esses escombros do tempo. Aí encontrei o Mário da Silva Brito e esposa e fomos visitar Cora, que nos recebeu falante, foi à cozinha nos preparar um café como se fazia nas antigas casas e fazendas, e seguiu contando a história de sua vida (como fugiu de caminhão com o amor que tinha quando adolescente…) e foi mostrando os cadernos onde anota as poesias e tudo o que vive e sente.

A cidade tem um número alto de pessoas com bócio e de “bobos”. Dizem-me que cada família tem seu “bobo”, que funciona como moleque de recados e para outros trabalhos não complexos. Uns dizem que isso é resultado das relações incestuosas, outros dizem que vem da água da região.

No aeroporto de Goiânia, Juruna (figura mítica representando os índios brasileiros nessa fase de abertura, sempre andando com seu gravador para gravar as promessas dos políticos). Me chama para apresentar-me pessoas que são meus leitores.

23.11.1981
Dei uma entrevista à Manchete sobre o verão, tentando jogar ironicamente com o título que a imprensa me deu de “profeta do verão”. Ao fim digo: como ninguém é profeta em sua terra, estou indo para Aix-en-Provence, no inverno. Além do mais, um profeta só não faz verão.

Affonso Romano de Sant'Anna

É poeta, cronista e ensaísta. Autor de Que país é este?, entre outros. A coluna Quase diário foi publicada no Rascunho até fevereiro de 2017.

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