Quase-diário #109

Reunião da cadeira de Literatura Brasileira da PUCRJ. Enquanto não chegam todos
01/05/2009

21.10.87
Reunião da cadeira de Literatura Brasileira da PUCRJ. Enquanto não chegam todos, comentando o artigo que escrevi sobre Gullar/Cabral, Gilberto Mendonça Telles conta duas coisas sobre Cabral:

1. No Porto (onde serviu como diplomata) Cabral já de porre, bebendo no hotel, começa a se referir a Drummond como “Dr. Drummond”. E falava mal de diversas pessoas mostrando azedume e agressividade.

2. Drummond um dia pergunta a Gilberto: “Já leu o último livro do Cabral?” E como Gilberto disse “não”, Drummond então lhe oferece o livro que tinha dedicatória de Cabral para Drummond. Mas Drummond escreveu em baixo para Gilberto: “Você que gosta dessas coisas…”

10.01.88
Leio um artigo curioso de Domingos Carvalho da Silva sobre seus contatos com Oswald de Andrade. Conta coisas interessantes e contraditórias: Oswald é quem produziu com um administrador paulista e seu filho Oswald de Andrade Filho o escudo do Congresso Eucarístico de São Paulo, em 1952.

Curioso: na sua morte, diz Domingos Carvalho, não havia mais que quinze pessoas presentes. Penso na diferença entre o espetáculo da morte do artista hoje no Brasil e naquele tempo. É necessário um estudo sobre isso. O papel da TV. A morte como espetáculo: os colegas do morto dando entrevistas na TV.

12.07.82
Acabo de fazer uma triste e surpreendente descoberta: a enciclopédia Mirador que o Antonio Houaiss publicou há poucos anos, fazendo a relação bibliográfica de todos os escritores brasileiros importantes até hoje, esquece simplesmente de Murilo Mendes e Cassiano Ricardo. Ai, meu Deus! Poderiam ter esquecido de mim, como aliás esqueceram, mas desses?!

07.06.82
No Festival de Berlim, me surpreendeu Manuel Puig, que embora tímido, fez uma bela exposição sobre a questão da Guerra das Malvinas ora em curso, e contou aquela piada histórica: os outros povos latino-americanos “descendieran” de maias, astecas e incas, mas os argentinos “descendieron” dos navios.

19.06.82
A Guerra das Malvinas acabou. Tragicamente como se previa. Meu poema O último tango nas Malvinas foi publicado n’O Pasquim, O Estado de S. Paulo, Estado de Minas e Zero Hora.

23.07. 82
Me diz Micheline, ex-mulher do Leonam, que na Dinamarca traduziram e publicaram O último tango nas Malvinas no jornal Politick.

23. 03.87
10 horas da manhã. Acaba de telefonar Rubem Braga: morreu Hélio Pellegrino, às duas da madrugada, numa clínica na Rua Canning: enfarte. Desde segunda-feira não estava bem.

“Vou ficar de vez na porta deste cemitério”, eu dizia num poema quando morreram vários amigos no ano passado.

Brilha o sol neste terraço.

Tem razão Lorca:

Mucho tiempo pasará
hasta que nazca un andaluz
de tez tan pura.

21.05.88
Leio O círio perfeito de Pedro Nava. Primorosas descrições das cenas de hospital e o necrotério durante a Revolução de 30. É mesmo um bom estilista: recupera expressões populares, compara os corpos mortos e vivos com pinturas e esculturas, procede como um romancista. E que riqueza de detalhes, de coisas vividas há 50 anos…

Dentro do mesmo volume editado no ano de sua morte, uma reportagem da IstoÉ que termina com um poema meu transmitido pela Globo:

Um tiro na memória.
A mão que inscreveu outros
apagou a própria história.

E mais: uma foto de Hélio e Otto na porta do cemitério. Olho-a: Hélio também se foi há pouco. Na outra página, foto de Drummond, que também se foi.

E eu lendo sobre mortos e cadáveres. E doente com hepatite.

13.05.88
Não sei escrever diário. Preguiça. E, depois, as crônicas e a poesia são meu “diário”.

Affonso Romano de Sant'Anna

É poeta, cronista e ensaísta. Autor de Que país é este?, entre outros. A coluna Quase diário foi publicada no Rascunho até fevereiro de 2017.

Rascunho