Quase-diario 112

Saio de uma aula na Universidade de Aix-en-Provence, onde, de repente, disse: “O famoso poema Un coup de dés”... E dei-me conta de que ninguém sabia do que estava falando
01/08/2009

24.03.1982
Saio de uma aula na Universidade de Aix-en-Provence, onde, de repente, disse: “O famoso poema Un coup de dés”… E dei-me conta de que ninguém sabia do que estava falando. E repito e insisto e falo de Mallarmé e me dizem que não é ensinado no Liceu, pois é considerado difícil. De novo, o mesmo trauma que aqui tive quando da primeira vez que falei de Greimas, Todorov, Lacan, Derrida e Lévi-Strauss. Só Barthes conheciam, e de nome. E a gente no Brasil pensando que isto é moeda comum aqui. Justo o contrário. Estou me lembrando de três alunas francesas que tive no Brasil, que nunca tinham ouvido na França esses nomes, e aprenderam tudo isto no Brasil.

13.04.1982
Leio L’art de devenir un écrivain original en trois jours, de Ludwig Borne, artigo que influenciou Freud e o fez descobrir o processo de associação de idéias, pois o autor recomenda que quem quiser ser escritor que se feche num quarto durante três dias, escreva com toda sinceridade possível o que pensa sobre os principais problemas pessoais e políticos. Separo este trecho: “Não é espírito mas caráter o que falta à maioria dos escritores para serem melhores do que são. Esta fraqueza provém da vaidade. O artista, o escritor, deseja dominar e superar seus camaradas; mas para dominar alguém é preciso colocar-se ao lado dele, e para superá-lo é preciso marchar sobre o mesmo caminho que ele. Os bons e os maus escritores têm todas as coisas em comum. O mau se encontra inteiramente no bom, este último possui algo a mais. O bom segue o mesmo caminho que o ruim, mas ele vai um pouco mais longe”.

Esse filho-da-puta do Freud realmente sabia das coisas. Ontem na minha insônia li o artigo de Maria Mocovici Le monde reel — em que estuda a relação de Freud com o misticismo. Duas frases de Freud, entre outras, me tocaram pela sua sabedoria: “O homem começa por ceder nas palavras e termina por ceder nas coisas”.

E ainda esta outra frase: “Para alguns de nós o destino assume a figura de uma mulher, ou de várias”.

23.04.1982
Acabo de ver mais um Apostrophe de Bernard Pivot, na Antenne2. Havia três autores imbecis e Cohen-Bendit. Este ainda faz o gênero “épater le bourgeois”, mas tem uma vivacidade insólita, e era, disparado, a atração do programa. Vive hoje numa comunidade em Frankfurt e vem de prefaciar um livro de dois alemães sobre “comunidades alternativas” — “Vivre autrement”. Me deixa “bouche beé” ligar a TV e ouvir um dos lideres de 68 falando livremente a favor do que chama de “droga doce” e até dizendo que tomou um “tapa” antes de ir ao programa. Cohen-Bendit, aliás, fez uma referência ao Brasil neste programa. Disse que a droga é um tal barato, que seu sonho era tomá-la no Brasil, “ali mesmo no meio do carnaval, naquela natureza incrível com samba e tudo”.

09.12.1981
Acabaram de matar John Lennon. Estou em Aix-en-Provence, é noite e a TV anuncia traumatizada este fato que nos choca a todos: três gerações — eu/Marina, Fabiana (que diz: “Cara, estou completamente apalermada”.) e Alessandra. Na televisão reprisam cenas de seus filmes. Amanhã e toda a semana os jornais e revistas vão se ocupar disto. O mito dos Beatles invadiu minha vida e a de várias gerações. Vi-os em Los Angeles no “Statium” (1966, creio); milhares de adolescentes aos gritos e prantos e eu ali, pasmo e feliz. Súbito me vem à mente tudo o que vivi nos anos 60 cercado pela atmosfera dos Beatles e suas seqüelas menos importantes como os Rolling Stones e outros grupos que também vi e ouvi. Em alguns poemas e textos de prosa, registrei algo do que foi isto.

Quando estava na Califórnia — um dos lugares privilegiados daquela década —, escrevi várias crônicas para o Estado de Minas (BH) e Diário Mercantil (Juiz de Fora), registrando emoções do jovem professor universitário provinciano. Não vou aqui atacar de recordações proustianas; este diário não é para isto. Aqui não faço literatura, senão o registro, o índice das coisas(…) É bizarro que o cantor que cantava a paz seja assassinado desta maneira.

02.05.1981
Amanhã, sigo para a Dinamarca a fazer conferências em Aarhus, Coppenhagen, Odensen. Não consigo esconder um certo orgulho como se, espantado, fosse pisar o fantástico e o paraíso.

A poesia re-vem aos poucos. E eu temendo-a, fazendo de conta que não é comigo. Displicente. Mas hoje chorei enquanto ouvia num comício pró-Mitterrand, o povo francês a cantar a Marselhesa. Chorei de felicidade, diante da beleza, diante da falta de democracia no meu longínquo país.

Affonso Romano de Sant'Anna

É poeta, cronista e ensaísta. Autor de Que país é este?, entre outros. A coluna Quase diário foi publicada no Rascunho até fevereiro de 2017.

Rascunho