Na Coréia, paz e poesia

Três ônibus nos levam à Coréia do Norte. Somos 120 poetas, 20 convidados de outros países. São seis horas da manhã. Embarco representando o Brasil neste Festival de Poesia pela Paz
01/03/2010

12.08.2005
Três ônibus nos levam à Coréia do Norte. Somos 120 poetas, 20 convidados de outros países. São seis horas da manhã. Embarco representando o Brasil neste Festival de Poesia pela Paz. Nos avisaram que não se pode levar nenhum material escrito para o Norte. Nem o portfólio com biografias dos poetas contendo poemas. Fico sem saber se o poema que apresentarei Os homens amam a guerra — em 3 línguas — deve ou não ser retirado da pasta. Idem com uns recortes que tirei do Le Monde sobre música de vanguarda, idem a matéria do Corriere della Sera sobre Il Postino (O carteiro e o poeta — aquela estória do Skármeta sobre Neruda); igualmente essa outra matéria sobre a arte contemporânea hoje na China. Pergunto a alguns coreanos o que fazer, mas têm opiniões conflitantes. O poder/temor faz isto: cria insegurança.

Estamos atravessando agora a montanha Kumgang de pedras quase brancas. Viagem longuíssima. Chegamos à Zona Desmilitarizada: DMZ. Claro que esse nome é um paradoxo, um oximoro. Cruzamos o histórico “Paralelo 36”, do qual ouvia falar diariamente nos noticiários da Guerra da Coréia (1950-1953). Há que passar a alfândega do lado de cá. Descem todos dos ônibus, filas, carimbos. A gente de cara com as cercas de arame farpado. Aliás, as praias que ladeavam a estrada por onde vínhamos já estavam com essas cercas de arame farpado.

Aqui e ali, pontuando a paisagem e o caminho, soldados do Norte plantados em lugares insólitos, com aquele uniforme antigo, ao sol, com aquele boné de militares de cem anos atrás.

Cruzada a Zona Desmilitarizada, chegamos finalmente à alfândega do Norte. E o clima é de medo. Haviam nos advertido:

— Não levar celular (recolhem todos).
— Não levar livros ou material escrito.
— Não levar câmara com filme a revelar, porque podem exigir que fique lá para ser revelado, e cobram caro.
— Há (poucas) coisas piores que as caras de um soldado da Coréia do Norte, impassível, olhando nosso passaporte na DMZ. Cara amarela como a de um mongol tardio, nenhum músculo de seu rosto se move. Já passei pelo Brisky Point entre Berlim Oriental e Ocidental, quando havia aquele muro, estive na fronteira militarizada entre Israel e o Líbano, mas essa fronteira aqui é a fronteira onde o novo absurdo que achamos normal se depara com a normalidade de outro mundo absurdo. Absurdidades diferentes. O guarda separa quatro escritores — Robert Pinsk, poeta americano; Antonio Colimas, espanhol; eu e Marina [Colasanti]. Temos que esperar, aguardar que todos passem: as fotos de nossos documentos extras (além do passaporte) não estavam de acordo. A de Colimas — alega o guarda — tem livros atrás. Neste país, nem em foto pode entrar livro estrangeiro.

Olhando as fotos dos companheiros, deduzo de onde veio o motivo de nossa segregação: é que de algum modo nossas fotos tinham um certo sorriso. É proibido sorrir por aqui, deduzo.

O hotel em que ficamos na Coréia do Norte foi construído pela Coréia do Sul e é pessimamente administrado pelos do Norte. Em frente ao jardim de entrada do hotel uma inscrição num grande mural traz o nome do ditador: KIM II O SOL DO SÉCULO 21.

Há uma longa apresentação à noite, poetas lendo seus textos, a tradução em coreano num telão. Leio parte de Os homens amam a guerra. E me lembro que um dos primeiros poemas que escrevi, ainda na adolescência sob o influxo de Castro Alves, foi um épico sobre a Guerra da Coréia.

No ônibus, voltando, os guias tiram de nossas mãos alguns objetos que podem provocar problemas ao retornarmos à fronteira. Recolhem de Marina uma pequena folha de árvore que ia levar como recordação, para botar dentro de um livro.

E no longo caminho de volta nos param numa espécie de churrascaria coreana onde sentadas em longas mesas as pessoas assam carnes em grelhas que enfumaçam o ambiente. A comida coreana não é para principiantes. Muita gordura. Quase acabaram com a poesia italiana, americana e espanhola. Precavi-me.

Aqui está também o poeta nigeriano ganhador do Prêmio Nobel de Literatura (1986) [Wole Soyinka]. Conversamos várias vezes. Houve uma bela sessão/recepção num templo budista onde ele leu seus poemas. O poeta americano Pinsky promete me enviar um DVD que apresentou na televisão americana no qual as pessoas mais variadas, de Clinton a fuzileiros navais e operários, dizem poemas que sabem de cor e que marcaram suas vidas. Há poetas do Kazaquistão, de Myanmar, Mongólia, Sri Lanka, Tailândia, Japão e do Ocidente. Vamos visitar templos e ruínas, comprar coisas eletrônicas. Meu guia coreano traduziu Iracema e Paulo Coelho. O guia dos italianos foi mais radical: traduziu Dante.

Ocorre a cerimônia de encerramento deste encontro. No hall do grande auditório, recebo a informação de que fui escolhido para fazer uma fala curta de cinco minutos agradecendo pelos poetas estrangeiros, e que tenho que terminar fazendo um brinde em coreano. Obedeço quase em pânico.

Nos trouxeram aqui porque acreditam que a poesia pode ajudar a fomentar a paz. Com efeito, nesta semana, pela primeira vez em 50 anos, o ditador da Coréia do Norte veio à Coréia do Sul e fez um gesto simbólico e forte: depositou flores no túmulo do soldado desconhecido.

Affonso Romano de Sant'Anna

É poeta, cronista e ensaísta. Autor de Que país é este?, entre outros. A coluna Quase diário foi publicada no Rascunho até fevereiro de 2017.

Rascunho