Tenho na estante um livro de fotos de escritores, de autoria do fotógrafo argentino Daniel Mordzinski. Alguns aparecem de corpo inteiro. De uma autora se vê o olho negro e uma mecha de cabelo descolorida sobre a pele do rosto negro. Alguns estão de perfil, alguns pulam. Alguns tapam o rosto, outros tiram a roupa. Mas uma página chama mais atenção do que as outras, pelo inusitado: estão ali apenas duas mãos e dois pés.
A dona dessas mãos e desses pés é Pilar Quintana, uma das mais importantes jovens escritoras colombianas da atualidade. Volto alguns anos na história para falar de jaguares, elefantes, mangas e da vida de surpresas que ela construiu junto com seus livros.
Em 1999, Pilar morava em Cáli. Tinha um trabalho burocrático que detestava, numa agência de publicidade. Poderia ter sido noutro dia qualquer, mas foi no dia primeiro de janeiro de um ano cheio de vagas e símbolos, o ano dois mil — com três zeros para rodar e tentar a sorte — que ela resolveu detestar de vez a vida que detestava. Virou as costas ao emprego, vendeu o apartamento em Cáli e foi embora: verbo transitivo direto.
Por seis meses viajou pelo Equador, Peru e Chile, até chegar a um refúgio de animais silvestres resgatados do mercado ilegal, entre Cochabamba e Santa Cruz, na Bolívia. A selva de um lado, os Andes do outro. Conheceu ali um jovem terapeuta de jaguares chamado Conor McShannon, irlandês criado na Austrália. Como Pilar, ele havia abandonado o trabalho. Depois de percorrer México, Guatemala, Belize, Honduras e Peru, chegou à Bolívia, onde o aguardavam os animais do refúgio e onde, juntos, aguardariam Pilar.
De publicitária a terapeuta de grandes felinos, Pilar ajudou um jaguar a recuperar a massa muscular que havia perdido, trabalhando numa jaula que Conor construiu no meio da selva. Em seguida, a colombiana e o irlandês tomaram um trem para o Brasil.
Pilar descreve assim sua visão do rio Amazonas, de dentro de um barco: “O rio era tão largo que em alguns pontos não se via a outra margem. Em outros, se dividia em múltiplos braços como um labirinto serpenteante de paredes verdes. Nesses estreitos profundos, quase era possível tocar as árvores da margem e participar da vida indígena na outra. As crianças brincavam na água, os homens pescavam, as mulheres teciam cestos. Suas casas eram de madeira com teto de palha, erguidas sobre palafitas para defendê-las das cheias, e tinham terraços que davam para o rio”.
“Meu sonho é morar numa casa dessas,” ela segredou a Conor. Que devolveu outro segredo: “O meu é construir uma casa dessas”. Na Colômbia, um amigo lhes perguntou o que pretendiam fazer quando terminassem de viajar. Falaram da casa. E o amigo lhes disse que, se estivessem dispostos a trocar as margens brasileiras do Amazonas pela costa colombiana do Pacífico, ele tinha um lote de 36 mil metros quadrados num lugar vasto, selvagem e inacessível, cercado pela mata. Poderiam comprá-lo. Ele esperaria por três anos.
Para ganhar dinheiro e continuar viajando, Pilar e Conor se lembraram dos gringos. Em Nova York, trabalharam ilegalmente durante algum tempo. Conor fazia mudanças e Pilar vendia roupas numa butique onde as peças eram decotadas, colantes, brilhantes. Detestava todas, como detestava o apartamento de subsolo onde viviam, cujas janelas finas junto ao teto só deixavam ver os pés das pessoas que andavam pela rua. Mas o ano era 2001, e depois do dia onze de setembro as coisas ficaram ainda mais difíceis em Nova York para trabalhadores ilegais.
Seguiram para o Nepal e a Índia, onde Pilar recebeu a notícia de que uma grande editora estava interessada em publicar seu primeiro romance, Cosquillas en la lengua, sobre a época em que ela abandonou seu trabalho em Cáli. No lombo de um elefante, Conor a pediu em casamento. Casaram-se quinze dias depois num templo hindu em Delhi, porque era a coisa mais simples a fazer, convertendo-se pro forma à religião que nunca seguiram. Como a cerimônia foi em hindi, não entenderam uma única palavra.
Quando Pilar assinou o contrato para a publicação de seu romance, estavam na Austrália, trabalhando numa plantação de mangas. Juntavam cada centavo, e antes do fim do prazo de três anos estabelecido pelo amigo na Colômbia já estavam de volta ao pedaço de terra entre a floresta e o Pacífico, onde construíram sozinhos a casa onde vivem hoje.
Ali, a chuva vem de todas as direções durante nove meses por ano. O vento arranca árvores e as vira de cabeça para baixo, com selvageria ingênua. As tempestades elétricas sacodem o chão. A água corrente é um luxo que obtiveram construindo eles mesmos um aqueduto. Enquanto a casa subia, dormiam numa cabana abandonada, em companhia de cães sem dono, tarântulas, cobras e morcegos. Um dia descobriram, num borrifo de água, a rota de migração das baleias jorobadas pelo Pacífico. Durante os seis primeiros meses, a única luz vinha das velas. Depois ganharam de presente um kit de energia solar. Pilar conta: “Às vezes nossa vida parece um documentário sobre a natureza. Às vezes, um reality show de sobrevivência na selva”.
Nessa casa, que já completa cinco anos de existência, Pilar escreveu seu segundo romance, Coleccionistas de polvos raros. E o terceiro, Club Iguana, que será publicado na Colômbia no próximo mês de maio.
Os terapeutas de jaguares me contaram parte dessa história entre um cigarro e outro, numa tarde quente e úmida de verão caribenho. Outra parte veio organizada por e-mail. O encanto e o espanto sobraram de vê-los juntos e leves como se fossem descolar do chão. Quem sabe descolam mesmo, nessa grande Macondo que vai desde o México até a Terra do Fogo, ao que consta. Na selva boliviana, um jaguar tem a vaga lembrança das mesmas mãos e dos mesmos pés clicados pelo fotógrafo e guardados nas páginas de um livro. Ou talvez a memória felina seja só invenção literária. Tanto faz.