“Lá estão dois jovens peixes nadando, e eles por acaso encontram um peixe mais velho nadando em direção contrária, que os cumprimenta com a cabeça e diz: ‘Bom dia, rapazes. Como está a água?’ Os dois jovens peixes nadam por algum tempo, e num dado momento um olha para o outro e pergunta, ‘O que diabos é água?’
“Este é um requerimento padrão para os discursos de colação de grau, o uso de pequenas histórias didáticas em estilo de parábola. Esta coisa das histórias acaba sendo uma das melhores e menos embromadoras convenções do gênero… mas se vocês estão preocupados achando que eu planejo me apresentar como o velho e sábio peixe explicando o que é água a vocês, peixes mais jovens, por favor não fiquem. Não sou o peixe velho e sábio. O sentido mais imediato da história dos peixes é simplesmente que as realidades mais óbvias, ubíquas e importantes em geral são as mais difíceis de ver e discutir.”
O discurso de David Foster Wallace na cerimônia de colação de grau do Kenyon College em 2005, cujo trecho inicial acabo de transcrever, foi publicado em livro este ano nos Estados Unidos com o título This is water — Isto é água, ou A água é isto, em traduções literais (a revista Piauí publicou trechos do discurso na época da morte de Wallace, em 2008, com o título A liberdade de ver os outros).
Recebi esse livro de presente pelo correio há algumas semanas, quando voltava de uma viagem estranha. Foram dias estranhos, fora do calendário. As viagens às vezes têm isso, essa textura de limbo, sai-se de um lugar e não se chega em outro. Não é bom. É como se você boiasse em plástico e não fizesse parte nem mais de si mesmo. Um pedaço de você ainda não veio, feito uma mala atrasada, e outro pedaço não se ajusta ao destino, feito um convidado desavisado sentando-se na cadeira de honra que não é dele.
Depois a tudo acaba e você fica se perguntando se aconteceu de fato. Seja como for, nem antes nem durante a viagem eu pensava em David Foster Wallace. Um dos nomes mais inventivos e importantes da ficção recente, ele morreu aos 46 anos na Califórnia e nasceu numa Ítaca continental — a pequena cidade no interior do estado de Nova York nomeada a partir da ilha grega. Quatro horas dentro de um carro e, se o trânsito deixar, chega-se de Ítaca a Manhattan.
Era ali, na pós-Ítaca de Manhattan, que eu estava — num quartinho sem janela, com uma porta translúcida dando para um corredor que desembocava num consultório dentário. Mas a minha hospedagem era fruto de uma rede de generosidades inquestionáveis. No primeiro dia, não choveu. Brotou um pedaço de céu entre nuvens e foi possível assistir às gaivotas. Em todos os outros dias choveu, e foi preciso desembainhar o guarda-chuva velho.
A viagem foi rápida demais, estranha demais. Coisas dirigidas pelo trabalho, ainda que costuradas com fios de felicidade clandestina (na pizzaria do Greenwich Village estava o adolescente que estudava para ser ator e usava uma cartola preta, e a americana que falava português com sotaque de Portugal enquanto comentava livros, e do outro salão vinha o solo de contrabaixo).
No vôo de volta para casa, quase uma linha reta apontada para o oeste, a lua nascia, nascia, e não acabava de nascer. A conta de quatro dias de estacionamento no aeroporto foi paga dali e varamos a estrada seca, dormente, com luzes horizontais e um céu imenso por cima.
Em casa, a caixa do correio transbordava. Entre as propagandas dos cartões de crédito e da nova pizzaria da esquina, havia uma caixinha de papelão sem o nome do remetente. Todos estávamos individualmente estranhos, em casa, ao fim da viagem estranha. Existia um peso entre nós. Trocávamos testas carrancudas, e quase não nos falávamos. Era tarde da noite e havia um sono suspenso graças a duas horas de diferença de fuso-horário (não apenas um vôo em direção ao oeste, mas também em direção ao passado). E, em meio aos inúteis envelopes e folhetos de propaganda trazidos pelo correio, a caixa sem o nome do remetente.
Abri a caixa. Nela estava aquele pequeno livro de capa dura, branca à exceção do título e de um peixinho dourado flutuando no canto. Letras cor de laranja, combinando com as nadadeiras do peixe, diziam This is water. “Alguns pensamentos, transmitidos numa ocasião significativa, sobre como viver uma vida compassiva.” David Foster Wallace.
Foi só então que os remetentes se revelaram: os amigos de Northampton, Massachusetts, com certeza adivinhando dias antes que precisaríamos de alguma espécie de boas-vindas naquela noite em que metade do nosso coração tentava fazer as pazes com a outra metade. A historinha estilo provérbio, sobre os peixes e a água, e a rasteira na auto-ajuda: não, eu não vou explicar o que é a água. A perplexidade, antídoto da frase feita, da fórmula pronta, é o inverso da auto-ajuda. É um tropeço para ficar de pé, e um piscar de olhos: “as realidades mais óbvias, ubíquas e importantes em geral são as mais difíceis de ver e discutir”.
David Foster Wallace, esse pensador dono de “um cérebro onívoro”, como bem sintetizou num artigo Malcolm Knox, estudou matemática e filosofia em Amherst, Massachusetts (cidade por acaso vizinha a Northampton, de onde meus amigos enviavam o livro). Mais tarde estudou escrita criativa no Arizona, e no fim da vida estava dando aulas na Califórnia.
Depois de ler o livro, naquela mesma noite, pensei nos sentidos que depreendemos das coisas. Presentes enviados pelo correio. Amigos que moram longe. Livros. Trabalho. Viagens, encontros, desencontros, frustrações. Às vezes sair de casa é um fracasso, e voltar é uma redenção, seja lá o que for aquilo a que chamamos de casa. Ao mesmo tempo, só volta quem sai (nunca me esqueci das palavras do meu pai ao se aposentar: acabaram-se as sextas-feiras). Em vários sentidos, a distância apura o olhar. Até o movimento dos astros é relativo: para um observador dentro de um avião voando de leste para oeste, a lua demora mais a nascer. Para uma gaivota que sobrevoa Manhattan, o ground zero após o onze de setembro é só um grande buraco no chão. Para um turista diante do ground zero, a gaivota é só mais um pássaro sobrevoando Manhattan. O mundo-lá-fora pode ser um perigo, e o sofá da sala também.
Mas como recorda David Foster Wallace nesse discurso tão pouco ortodoxo que chegou pelo correio sem avisar, é “como se as orientações mais básicas de uma pessoa diante do mundo e o significado de sua experiência fossem de algum modo automaticamente programados, como a altura ou quanto a pessoa calça, ou então absorvidas da cultura, como a língua”.
Reprogramar-se é, mais ou menos, tentar recordar dia após dia o que é a água. É bom que um livro exija isso de nós.