Poética em S. Bernardo define estética de Graciliano

Graciliano Ramos tem na ironia uma das suas melhores qualidades literárias, defendendo sempre uma estética popular, mas sofisticada
Em “Vidas secas”, Graciliano avança, de maneira radical, na técnica romanesca
01/09/2020

Embora com preocupações estéticas, de que nunca abriu mão, Graciliano Ramos investiu no popular, ironizou o planejamento clássico mas manteve o rigor criativo, inclusive com planejamento. Contraditório, procurava o caminho do meio.

No primeiro capítulo de São Bernardo, Graciliano apresenta uma irônica poética de romance que indica os caminhos para a construção da obra ficcional, sendo, ao mesmo tempo, a negação da poética tradicional, por isso mesmo irônica. Diz o narrador: “Antes de iniciar este livro, imaginei construí-lo pela divisão de trabalho”. O que sugere um raciocínio objetivo, e que a tradição considera sério e correto.

Na verdade, Graciliano, que é o autor e não o narrador, tem na ironia uma das suas melhores qualidades literárias, defendendo sempre, porém, uma estética popular, mas sofisticada. Talvez a ironia dirija-se a ele próprio, que tinha muito de tradicional e de conservador na construção da obra.

Um exemplo muito claro do tormento da linguagem em Graciliano, encontramos no terceiro parágrafo de São Bernardo, no qual palavras eruditas se alinham com populares. Isto é, ele defendia o uso clássico da palavra, mas ia em busca do popular, considerando, sobretudo, que o narrador da história, Paulo Honório, é um homem do povo.

Vejamos: “Estive uma semana bastante animado, em conferências com os principais colaboradores, e já via os volumes expostos (…) eu meteria na esfomeada Gazeta, mediante lambujem”. Conferência, em substituição a conversas, diálogos, debates revela uma sofisticação que contraria lambujem, uma expressão popular que significa corrupção, compra de opinião, dinheiro sujo.

Nesta primeira página do romance, o narrador mostra o planejamento da obra, ficando claro que Graciliano não é contra o planejamento em geral, mas contra este tipo: com linguagem de Camões, citações latinas, moralismo. Pelo contrário, a obra exige cuidados, sem extravagâncias, porém. Nem tanto ao céu, nem tanto à terra.

Estrutura
O narrador de São Bernardo, Paulo Honório, distribui o planejamento da seguinte maneira:

Padre Silvestre ficaria com a parte moral e as citações latinas; João Nogueira aceitou a pontuação, a ortografia e a sintaxe; prometi ao Arquimedes a composição tipográfica; para a composição literária convidei Lúcio Gomes de Azevedo Gondim, redator e diretor do Cruzeiro. Eu traçaria o plano, introduziria na história rudimentos de agricultura e pecuária, faria as despesas e colocaria meu nome na capa.

Este tipo de romance inevitavelmente levaria a um texto ruim, com excesso de gramatiquice, pontuação, ortografia e sintaxe, tudo de acordo com as regras tradicionais, que comprometem a verdade e a feitura do texto ficcional. Sem esquecer que o moralismo do padre levaria a um desastre literário. Como leva mesmo. Basta ler a seguir: “João Nogueira queria o romance em língua de Camões, com períodos formados de trás para diante. Calculem”.

Entra aqui o problema da língua portuguesa. A pontuação, a ortografia e sintaxe conforme a gramática tradicional. Pouco mais à frente, o narrador acrescenta:

O resultado foi um desastre. Quinze dias depois do nosso primeiro encontro, o redator do Cruzeiro apresentou-me dois capítulos datilografados, tão cheio de besteiras que me zanguei:

— Vá pro inferno, Gondim. Você acanalhou o troço. Está pernóstico, está safado, está idiota. Há lá ninguém que fale desta forma!

Azevedo Gondim apagou o sorriso, engoliu em seco, apanhou os cacos de sua pequenina vaidade e replicou amuado que um artista não pode escrever como fala.

— Não pode? — perguntei com assombro. — E por quê?

Azevedo Gondim respondeu que não pode porque não pode.

— Foi assim que sempre se fez. A literatura é a literatura, seu Paulo. A gente discute, briga, trata de negócios naturalmente, mas arranjar palavras com tinta é outra coisa. Se eu fosse escrever como falo, ninguém me lia.

— É o diabo, Gondim. O mingau virou água. Três tentativas falhadas num mês! Beba conhaque, Gondim.

Mais adiante, lemos, mais uma vez, o equilíbrio entre o popular e o gramatical:

Sumiram-me. Ficou-me um resto de indignação, depois serenei.

— Lorotas. Todos esses malucos dormem demais, falam à toa.

Além disso, em Vidas secas encontramos a resposta de Fabiano ao convite do Soldado Amarelo para jogar baralho: “É conforme, quem sabe, talvez. Tenho dito”.

Embora disposto a uma Estética Popular, Graciliano não radicalizava, como ocorre, por exemplo, com Jorge Amado. Destacamos, ainda, que em Capitães da areia o autor baiano apresenta uma poética de romance que se desdobra, mais tarde, em sua Estética Popular Brasileira. Juntas, as duas estéticas se transformam na Estética do Movimento Regionalista. Em síntese, do romance de terceiro herdeiro do Movimento Modernista.

Sequência inovadora
Em Vidas secas, Graciliano avança, de maneira radical, na técnica romanesca, criando aquilo que se convencionou chamar de “romance móvel” ou “romance desmontável”. Ou seja, de posse dos contos que escrevera para uma publicação argentina a fim de fazer dinheiro, e para algumas brasileiras, montou o romance que se transformaria no momento mais alto e belo da nossa produção literária.

Graciliano dá aos contos uma sequência inovadora aparentemente desarmônica e ilógica, sem perder a força interior. Para muitos críticos, o livro pode começar em qualquer conto, sem perder a unidade e sempre surpreendendo o leitor.

Caso o leitor escolha começar pelos capítulos Sinhá Vitória, seguindo-se Mudança, O menino mais velho, O menino mais novo e só então Fabiano, O mundo coberto de penas e Baleia, a narrativa terá, por exemplo, uma visão feminista.

Além desta renovação do “romance desmontável”, a literatura brasileira apresenta, pela primeira vez, o personagem inominado, a exemplo do soldado amarelo, o menino mais velho, o menino mais novo, que enriquecem grandemente a obra. De propósito, o autor escolheu personagens que falavam ou falam pouco e se manifestam apenas em grunhido. Evita, portanto, a linguagem coloquial.

Aliás, em depoimento ao jornalista José Condé, da coluna Arquivo Confidencial, da revista O Cruzeiro, Graciliano disse que os modelos para estes personagens foram os tios dele que moravam em Maniçoba, no sertão de Pernambuco, hoje conhecida como São José do Belmonte.

Raimundo Carrero

É escritor. Autor, entre outros, de Seria uma noite sombria Minha alma é irmã de Deus. 

Rascunho