Sem medo das palavras

O discurso sofisticado, sem concessões ao público, transformou Clarice Lispector em um ícone da escrita moderna
Clarice Lispector, autora de “Laços de família”
24/11/2018

A década de 1950 se distingue por uma narrativa afeita às experimentações. É nela que está situada Clarice Lispector (1920-1977), a escritora brasileira de maior projeção internacional, com uma nomeada que cresce a cada ano. Seu discurso sofisticado, sem concessões ao público, a transformou em um ícone da escrita moderna, criando uma recepção fanática, que entende sua obra como altar estético. Esta mesma devoção, de um leitor que se sente filosoficamente tocado pela problemática existencial em uma nova ordem de linguagem, particularíssima, sofreu algum abalo no final dos anos 1960, quando se cobrava do escritor brasileiro uma participação social. Neste período, a escritora intimista, das complexidades de espírito, se faz militante. Em 22 de junho de 1968, está em uma passeata no Rio de Janeiro contra a ditadura militar, ao lado de centenas de intelectuais. Agenda ativista que vai ser mantida nos anos seguintes.

Na produção bibliográfica, há uma mudança nítida a partir daí. Em 1974, publica um conjunto de contos sobre sexo, encomendados pelo editor (A via crucis do corpo), histórias em funcionamento de verdade, sem o arcabouço reflexivo da autora. Na apresentação desta coletânea que ocupa um lugar à parte em sua obra, ela escreve: “Fiquei chocada com a realidade”.

Este choque é mais amplo. A escritora vinha passando por um dilema: o seu apego às personagens burguesas, e suas preocupações estéticas, e a proximidade afetiva de seres sólidos, gente pobre e sofrida em um país convulsionado. Este contato com um outro tão heterogêneo tem também um marco, registrado em uma foto e em uma dedicatória. Em 17 de julho de 1961, ela se encontra com Carolina Maria de Jesus (1914-1977), cujos recentes diários (Quarto de despejo) já tinham vendido 80 mil cópias. A escritora negra, oriunda da favela do Canindé e ex-catadora de lixo autografa um exemplar para a já consagrada Clarice: “À ilustrada e culta escritora Clarice Lispector. Desejo-te felicidade na vida”. No contato com esta obra forte, em que as limitações instrumentais não tiram o grande valor literário e humano de uma escrita nascida sob o signo da fome e da humilhação, começa a grande mudança estética que resultará no romance mais amado de Clarice, que completa agora 40 anos — A hora da estrela: edição com manuscrito e ensaios inéditos, Rio de Janeiro: Rocco, 2017.

Neste volume, ela se faz metonimicamente presente pela caligrafia, revelando na letra dolorosa o seu grande esforço físico, durante a luta final contra um cancro, para concluir o último projeto — morreria no mesmo ano. O livro já não fazia parte de uma carreira literária, era a batalha contra o vazio que nos aguarda. Por isso, a obra ficcionaliza a desistência iminente da própria escrita e o compromisso de continuar, não pela escritora em si, mas pela personagem que tanto precisa da mão escrevente. Era também um desejo de pacificação com seu passado, a afirmação da brasilidade de uma estrangeira que, nascida na Ucrânia, foi acolhida pelo Brasil, mais especificamente pelo Nordeste (Maceió e Recife), locais onde transcorreu sua infância.

É por razões de identidade nacional e pessoal que A hora da estrela coloca em cena uma personagem nordestina, a pobre e ingênua Macabéa, ignorada por todos, explorada no trabalho, vivendo uma existência de pequenos nadas. Macabéa ecoa a inexistência social da mulher pobre brasileira, relegada aos depósitos cruéis de pessoas descartadas, tema central de Quarto de despejo. Carolina Maria de Jesus não deu apenas espessura humana para a mulher pouco ou não escolarizada, trabalhadora e discriminada racialmente, ela a dotou de espessura estética, tornando-a digna de uma existência artística.

Assim como Carolina, Macabéa vive para a escrita. Enquanto a autora favelada dedica-se integralmente aos seus diários, em um jogo de tudo ou nada com a palavra, Macabéa é uma datilógrafa profissional. Ambas escrevem de forma tida como errada, expressando-se dentro de um código popular. O namorado de Macabéa, ironicamente chamado Olímpico, fala e pensa por clichês. Estas marcas da oralidade são absolutamente novas em Clarice Lispector, em uma opção que a vincula a uma classe social subalterna. É uma escolha ética de estar ao lado dos que sofrem, um esforço imenso da escritora refinada de encontrar a grandeza em seres aquém da linguagem como arte.

Paralelamente a isso, há a história banal de amor e abandono, culminando em uma morte irônica. A falta de um uso mais efetivo da linguagem por parte da datilógrafa, reprodutora imprecisa dos textos que lhe são ditados, encontra uma equivalência no enredo folhetinesco de uma vida menor. Ousando perscrutar o sentido das coisas, em uma busca do conhecimento pelos programas de rádio, Macabéa se constitui uma heroína do saber em uma faixa social em que esta é uma palavra de luxo.

O narrador tem esta noção de que a linguagem ganha uma essencialidade para ela, e mantém-se próximo de sua fala: “Não vou enfeitar a palavra pois se eu tocar no pão da moça esse pão se tornará em ouro — e a jovem (ela tem 19 anos) e a jovem não poderá mordê-lo, morrendo de fome”. Temos aqui explicado o cuidado narrativo do livro, que entende, na mesma perspectiva de Carolina de Jesus, a palavra como alimento. Eis a razão de a parte dos discursos diretos, raros em outras obras de Clarice, aparecer enquanto palavra-pão de personagens simples, que não deve ser dourada pela literatura.

Mas Clarice não estava falando apenas de um outro distante. Ela estava se reconciliando com sua infância pobre no Nordeste, com o verbo estropiado das pessoas comuns, projetando-se, como eu experimental, nesta personagem, que é um ser coletivo na medida em que repete histórias de muitas outras Macabéas, movidas por objetivos menosprezados. Não há como não pensar na dedicatória de Carolina para a ilustrada e culta escritora quando lemos esta reflexão em A hora da estrela: “Felicidade? Nunca vi palavra mais doida, inventada pelas nordestinas que andam por aí aos montes”. O romance pode ser entendido como resposta a este confronto de Clarice com a força existencial e estilística de Quarto de despejo, permitindo ler Macabéa como uma Clarice nordestina, a cumprir aquela sina, que foi também em alguma medida a da mineira Carolina.

Esta identificação de gênero, que a coloca em outra linguagem, é a maior alteridade experimentada por Clarice em seus livros que são sempre um movimento em direção ao outro. Para intensificar esta adesão, ela cria um narrador masculino (Rodrigo SM) e imediatamente o destitui já na abertura do romance: “Dedicatória do autor (Na verdade Clarice Lispector)”. Há um desejo de verdade que a leva a se incluir ali, discutindo os estatutos da escrita na parte mais intelectual da narrativa, em um verdadeiro making of. O romance deve descer à fala e àqueles que só têm esta precária forma de comunicação de seus dramas convencionais. Este narrador homem/mulher, o primeiro narrador transgênero da literatura brasileira, surge para fazer com que a jovem feia (“— Me desculpe eu perguntar: ser feia dói?”) seja amada de maneira hiperbólica, justificando assim a sua breve vida voltada ao encontro de um grande amor, que só se cumpre metaforicamente pela escrita. Clarice/Rodrigo transformaram Macabéa numa estrela, seu outro sonho impossível, em uma afirmação “da grandeza de cada um”.

Miguel Sanches Neto

É doutor em Letras pela Unicamp, professor associado da Universidade Estadual de Ponta Grossa (Paraná). Estreou nacionalmente com Chove sobre minha infância (2000), um dos primeiros romances de autoficção da literatura brasileira. Autor de dezenas de livros em vários gêneros, destacam-se os romances Um amor anarquista (2005), A máquina de madeira (2012), A segunda pátria (2015). Acaba de lançar O último endereço de Eça de Queiroz (Companhia das Letras) e sua poesia reunida A ninguém (Patuá). Finalista dos principais prêmios nacionais, recebeu o Prêmio Cruz e Sousa de 2002 e o Binacional de Artes Brasil-Argentina, de 2005.

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