África fala

“Luanda, Lisboa, Paraíso” tornou-se a ficção feminina mais importante em nosso idioma em 2019 por explorar os dramas de uma imigração invertida
Djaimilia Pereira de Almeida, autora de “Luanda, Lisboa, Paraíso”
28/02/2020

Um outro realismo tem se imposto na cultura de língua portuguesa. O realismo do lugar de fala. Toda uma literatura com denominação de origem, tanto do ponto de vista de grupo social, quanto de raça e de gênero, vem enriquecendo a percepção do humano, ao mesmo tempo em que produz alguma justiça em uma literatura marcadamente masculina, branca e heterossexual. Este realismo pressupõe que só o autor ou a autora pertencente àquela identidade têm as credenciais para falar em nome de seus iguais. Cria-se assim uma vinculação biográfica de autor(a) com personagens, temática e voz narrativa.

Mas a linguagem pode ter outras configurações que não a de natureza realista, embora haja uma tendência para o documento linguístico. Vazado em uma busca poética de plasticidade e de enredo, Luanda, Lisboa, Paraíso, da angolana Djaimilia Pereira de Almeida, tornou-se a ficção feminina mais importante em nosso idioma no ano de 2019 por explorar os dramas de uma imigração invertida, de África para Portugal. Esta outra diáspora, sequela de uma colonização perversa empreendida pelos países europeus, ainda está por ser explorada ficcionalmente.

Um dos tópicos literários recorrentes em Portugal é o dos “retornados”, dos portugueses que partem para outros países e depois voltam, geralmente com dinheiro e alcunhados com a nacionalidade postiça — são os angolanos, os brasileiros, os moçambicanos, etc. É a viagem de volta, o reencontro com a pátria-mãe. Djaimilia constrói uma novela (do ponto de vista narrativo, não é propriamente um romance) de africanos na metrópole, em que dois personagens, um pai angolano e o filho com defeito físico, chegam a Portugal para tratar da saúde do menino. Este seria o objetivo oficial da mudança, mas fica subentendido que Cartola de Sousa (o pai) quer experimentar-se na metrópole, em uma situação de igualdade vivida em África com um médico português com quem trabalhou e que regressou à Europa: “Parecia pensar que um dia lhe bateriam à porta e lhe diriam que estava tudo tratado, que era enfim português, direito que julgava pertencer-lhe”. Cartola ocupa, assim, por esta adesão ao amigo, um lugar de retornado.

Desde o título, percebemos que o enredo se organizará geograficamente nesta vetorização: Luanda → Lisboa. Viagem de ida, de um ponto de vista mais superficial; viagem de volta, de um ponto de vista dos desejos ocultos. O enredo acompanha este movimento do pai, e vamos conhecendo as suas peregrinações lusitanas. Perde o prestígio de mestre que tinha em sua cidade, obriga-se a trabalhos braçais na construção civil, vive em subcondições, parando, por fim, na favela Paraíso, tradução irônica de seu sonho do grande mundo europeu. Cartola não consegue se integrar a Portugal, e isso fica evidenciado nas narrativas circulares de Djaimilia sobre este período, em que os personagens se desorientam, encontrando amizade e amor (em todos os sentidos) apenas no galego Pepe e sua família. Ou seja, a união se dá fora do grupo luso, entre os excluídos.

De Luanda ficamos sabendo notícias ralas pelos telefonemas para a esposa, de suas cartas e da visita de férias da filha e da neta. O lar é assim apagado durante a narrativa, para dar espessura à vida em Portugal. Em África ficaram a mãe doente (Glória), a filha e a neta. Sentimos um apego imediato a estas personagens, que vivem a difícil aventura da permanência.

Aqui temos o grande diálogo contranarrativo do livro. Luanda, Lisboa, Paraíso reencena o processo das navegações, só que em sentido contrário. Durante as navegações, as mulheres portuguesas foram deixadas em casa, cuidando de tudo, enquanto os homens partiam para as novas terras, de onde muitas vezes não voltavam, ou por motivo de morte ou por desposar aquelas paragens. O histórico de abandono feminino se consolida na figura de Glória, condenada à condição de acamada, que não pode se mover, aos cuidados da filha e da neta. Partem para Portugal o pai trabalhador e o filho defeituoso, para tentar construir uma história no país ao qual, culturalmente, também se sentem pertencer. Esta divisão por gênero revela a tese do livro. África vista como um princípio feminino. Europa, como princípio masculino. África vista como casa; Europa como aventura ilusória. Djaimilia convoca o leitor a percorrer com Cartola este caminho de sofrimento, até fazer a descoberta de seu equívoco cultural.

Em Os Maias, de Eça de Queirós, João da Ega faz uma crítica racista e depreciativa à mania de cópia dos portugueses, que permite entender a busca frustrada de Cartola. “Nós julgamo-nos civilizados como os negros de São Tomé se supõem cavalheiros, se supõem mesmo brancos, por usarem com a tanga uma casaca velha do patrão”. Cartola quer usar uma identidade velha do amigo médico, e isto está representado no objeto — antiquado mas refinado — que ele compra ao término de seu périplo — uma cartola, que ele passeia em Lisboa, tendo que dar um fim a ela, no único ato político de rejeição que ele esboça, e com o qual se encerra a obra. Fica implícito que a vida gloriosa, com todas as suas dificuldades, é a da identidade africana, representada pela mulher e sua descendência feminina.

Se o livro tem uma importância inquestionável, isso não significa que ele não comporte problemas. O principal deles é uma tendência rocambolesca, com uma sucessão de mortes e de vivências que atendem mais a uma necessidade de demonstrar as tragédias da vida de imigrante, em um exagero nas soluções encontradas pela autora para produzir o lampejo de consciência de Cartola. Ela explora pouco a densidade das experiências, preferindo comentários em espiral sobre a trajetória dos personagens, em um movimento acumulativo de pequenos nadas. A escolha de nomes também traz soluções óbvias. O rapaz com um defeito no calcanhar se chama Aquiles — o calcanhar de Aquiles. O pai se chama Cartola (um dos símbolos do vestuário do colonizador). A periferia para onde são empurrados tem o nome irônico (recurso batido) de Paraíso. Há uma intencionalidade programática, tanto do ponto de vista dos episódios quanto dos nomes próprios, que escancara a tese que se quer demonstrar no livro. Boa parte das cartas e chamadas telefônicas e os documentos acrescentados aos capítulos funcionam antes como decoração, tal como as páginas em preto-luto que constam da edição brasileira. Não raro, no desejo de fazer poesia com o verbo narrativo, Djaimilia se perde em frases igualmente decorativas, edulcoradas demais, como “Mas parecia um caracol a fazer planos para comprar uma concha nova”, o que conduz a obra a uma gramática forçadamente lírica na maior parte de suas páginas.

Não obstante, Luanda, Lisboa, Paraíso é, enquanto arcabouço de representação, uma obra forte, de defesa de uma língua portuguesa poética, de uma identidade autoral feminina e negra, contra a força centrípeta da identidade europeia.

>>> Leia entrevista com Djaimilia Pereira de Almeida

 

 

Luanda, Lisboa, Paraíso
Djaimilia Pereira de Almeida
Companhia das Letras
200 págs.
Miguel Sanches Neto

É doutor em Letras pela Unicamp, professor associado da Universidade Estadual de Ponta Grossa (Paraná). Estreou nacionalmente com Chove sobre minha infância (2000), um dos primeiros romances de autoficção da literatura brasileira. Autor de dezenas de livros em vários gêneros, destacam-se os romances Um amor anarquista (2005), A máquina de madeira (2012), A segunda pátria (2015). Acaba de lançar O último endereço de Eça de Queiroz (Companhia das Letras) e sua poesia reunida A ninguém (Patuá). Finalista dos principais prêmios nacionais, recebeu o Prêmio Cruz e Sousa de 2002 e o Binacional de Artes Brasil-Argentina, de 2005.

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