Quanto mais oficial a cidade, mais irreverente a sua literatura? A resposta pode ser sim se se levar em consideração a densidade de poetas marginais que Brasília abriga, contando entre eles três figuras maiores desta corrente antiestética: Chico Alvim, Eudoro Augusto — estes um pouco mais escondidos — e o sempre presente Nicolas Behr — aliás, Nikolaus Hubertus Josef Maria von Behr. O nome nobre exigia um destino sério para o filho de imigrantes europeus que acabou contaminado pela infância e pela adolescência no interior selvagem do Brasil. Com a posterior mudança para Brasília, persistiu a identidade ligada aos fenômenos de alegria em meio à natureza e à irreverência como postura de linguagem, florescendo o poeta e ecologista Nicolas Behr, com o nome revisto e mais diminuído (Niki), como é próprio deste movimento. Antônio Carlos de Brito virou Cacaso. Ricardo de Carvalho Duarte, Chacal. Francisco Soares Alvim Neto, Chico Alvim. Simplificações afetivas de tratamento que revelam uma poética.
O maior legado desta geração foi tirar a solenidade do verbo. E, para isso, era preciso romper com a seriedade dos próprios nomes. E também com a seriedade do suporte poético. Se a falta de um sistema editorial para a poesia jovem dos anos 1970, auge da ditadura militar, era uma condicionante para os livretos mimeografados, estes reforçavam o projeto político-poético da época. Os livros ganharam um formato panfletário, permitindo a sua transmissão de mão em mão em eventos culturais, principalmente em shows, como se fosse uma troca de senhas. Se fez, enquanto objeto, material subversivo, e não só pelo conteúdo. Por portar tais livretos, Niki foi preso pelo Dops naquela quadra de trágica memória.
O conteúdo “rápido e rasteiro” (título de um poema de Chacal) também estava em sintonia com a urgência de tempos bicudos, em que ler e escrever não podiam ser atividades sem risco, na paz da biblioteca. Tudo acontecia na rua, no movimento, na célula literária. Os livros tinham que ser consumidos instantaneamente, e depois desaparecer. Eram material fungível.
O grande sucesso de Nicolas foi sua estreia, Iogurte com farinha (1977), impresso em pequenos lotes, sob demanda, até porque estocar estes caderninhos seria prova inconteste de subversão. Seguiram-se mais coletâneas: Grande circular (1978), Caroço de goiaba (1979), Chá com porrada (1978) e Bagaço (1979). Estas publicações ganharam uma versão fac-similar pela Semim Edições (Brasília, 2018), em uma caixinha intitulada Sete sete sete nove — mantendo assim a precariedade gráfica da estreia.
Tais improvisações devolvem ao leitor o grau de insubordinação editorial de um autor feito impressor, designer gráfico acidental, vendedor ambulante de sua poesia. Nicolas povoa os espaços mortos do livro. O exemplo mais feliz desta tarefa de artista múltiplo é como ele subverte a ficha catalográfica como oportunidade estética e política. Ao localizar a origem geográfica das edições, ele faz uma poesia invasora.
“Brasília, capital da desesperança, natal de 77”.
“Brasília, vê se toma uma atitude, pô! julho de 79”.
“Brasília, quatro pastéis e um caldo, junho de 79”.
“Brasília, viva o pastel da rodoviária, maio de 79”.
A repetição do topônimo é mais do que um dado técnico. O poeta e a cidade estão em diálogo. Ela se personifica nestes lances amorosos. Será, desde sempre, a matéria lírica por excelência de Nicolas.
Fica evidente, tanto do ponto de vista material (forma de impressão, desenhos, textos manuscritos) quanto de linguagem (um olhar de primeira vez) a natureza infantilizadora do código marginal. Os poetas se viam como crianças crescidas que cultivavam uma identidade incômoda, de recusa do mundo adulto e seus equívocos. A figura central desta vertente, enquanto linguagem, é a criança, o que liga estes autores a Oswald de Andrade (Primeiro caderno do aluno de poesia), Manuel Bandeira e Carlos Drummond de Andrade (Boitempo), numa verve primitivista. É este o mote memorialístico a partir do qual se organiza a nova antologia de Nicolas Behr — O menino do mato que engoliu Brasília (Entrelinhas, 2019). A história do menino nascido em Diamantino, onde viveu o tempo rústico, ao qual ele retorna pela palavra, é uma viagem impossível, já que: “o cometa volta/ a infância, não”. A conquista do passado se dá pela imaginação, na qual o poeta se sente mais presente do que quando volta fisicamente ao lugar do crime de ter sido: “será que preciso estar lá?// pela imaginação não vale?”. O livro é uma resposta a este questionamento. Sim, pela imaginação vale. Este retorno é uma ressurreição, uma reafirmação do menino, pois o poeta sente a vida adulta como existência póstuma: “a primeira/ morte/ é a da infância”.
A fase seguinte é a da adolescência em Cuiabá, com poemas inéditos. Aqui o menino se sonha geólogo e tem como ícone a bicicleta, que lhe dá lições de liberdade. As aventuras tomam todo o espaço existencial. E esta é a grande experiência poética, a da vitalidade: “a vida escrevia/ poemas pra gente// pra que poesia?”.
Partindo destes regressos em poemas recentes, a antologia fecha com a memória editorial, em que Nicolas recolhe poemas sobre Brasília, o grande tema de sua obra, em Menino candango. O que estes poemas têm a ver com a infância? Para o poeta, Brasília é a cidade-infante, em sua linguagem arquitetônica modernista, com o que tem de beleza e perversidade. É também o momento do menino embirrado que não quer crescer, e que escreve como se nunca tivesse saído da infância.
sou
de brasília
mas juro
que sou inocente
Esta inocência não é só pela identificação do poeta com a gente pobre, que construiu a capital e mora hoje nas cidades satélites, numa negação do poder — é também a inocência de quem continua em estado permanente de ingenuidade lírica e disponibilidade de ser.
Com estudos de sua trajetória e com comoventes fotos juvenis, ao lado dos pais e dos irmãos, num festival de cabelos brilhantemente loiros, O menino do mato que engoliu Brasília é um dos grandes livros brasileiros sobre a infância, esta obsessão da cultura brasileira, e mostra Nicolas Behr como o poeta de um tempo e uma linguagem eternamente paralisados, que nos definem como nação.