Para alcançar o equilíbrio entre a realização artística e o conteúdo social para o qual é solicitado, é necessário que o escritor tenha plena consciência dos seus deveres para com a estética e para com a realidade pela qual está envolvido. Sem isso a obra corre o risco de se exilar no Paraíso Perdido da Beleza, ausentando-se do coração selvagem da vida, no dizer de Joyce e Clarice Lispector, ou sucumbir no meramente panfletário, no discurso político entre pobres e ricos, entre derrotados e vitoriosos, que a História já registra e confirma, com grande vantagem.
Esta, parece-me, é a grande batalha que o estreante João Paulo Parisio enfrenta e vence, com grande qualidade, nos contos de Legião anônima. Até porque é compreensível, e bastante compreensível, que um jovem escritor se deixe arrebatar pelo drama social, como se verifica em boa parte do seu ótimo livro, reduzindo sua matéria artística ao mero questionamento sócio-antropológico. A matéria-prima de um escritor é, sem dúvida, a sociedade e suas injustiças, mas a realização artística se dá através dos caminhos estéticos, éticos, intuitivos e técnicos.
Foi o que realizou muito ou muitíssimo bem o russo Górki ao escrever Mãe, o grande romance do regime socialista. Ele próprio destaca que sua universidade literária, de onde retirou os temas e assuntos que resultaram no seu trabalho revolucionário, é a vida, com suas belezas e contradições, com doçuras e amargas lições. Mesmo assim o artista precisa sempre investigar os elementos internos da obra para realizá-la integralmente. E que elementos internos são estes? Os personagens, o texto, as cenas, os cenários, os diálogos, ou seja, tudo aquilo que existe na intimidade da obra para que se realize com plenitude, de forma a seduzir o leitor pela Beleza — objeto definitivo de toda obra de arte — assim como o pintor é capaz de seduzir pelos elementos da pintura, a começar, é claro, pela cor ou pelas cores.
Na abertura de Legião anônima, João Paulo revela logo esta preocupação com as dores do mundo, trazendo para as páginas iniciais um problema social do corpo que cai na rua da cidade combalido pela fome e pelo esquecimento. Resvala pelo discurso político, mas imediatamente assume o compromisso estético, com frases que se desdobram e que destacam a intimidade do texto, a necessidade de questionar as sensações humanas para ressaltar o poético à flor da pele, a vertigem do dia em desmaio. Basta ler, agora, estas primeiras palavras:
Quando em plena Conde da Boa Vista, em meio à visão purgatorial que constituía, emparedada por edifícios antiquados e soturnos, aquele homem sem nada de extraordinário começou a passar mal, as pessoas não se interessaram.
O desdobramento das frases começa por situar o personagem na paisagem recifense ou numa Conde da Boa Vista cheia de “edifícios antiquados e soturnos” “em meio à visão purgatorial”, o que humaniza a paisagem integrando aí perfeitamente o personagem que, afinal, não tem nada de extraordinário. O que significa dizer que ele tem, sim, muito de extraordinário, porque se apaga na avenida com “edifícios antiquados e soturnos”.
Um discurso artístico-político-social envolvente e sedutor, que qualifica o personagem não pelo adjetivo, mas pela atmosfera da cidade, como veremos mais adiante.
Um dia de mormaço numa cidade tropical e litorânea, mas situada em grande parte abaixo do nível do mar, mas quase toda construída sobre paus e mangues aterrados, volta e meia tem esse efeito sobre alguém num ajuntamento de gente como era sempre o caso ali.
Assim, este conto de abertura, A boa ação, é, sem dúvida, representativo deste livro de autor jovem, para quem Lourival Holanda já vem chamando a atenção. E que merece todo o cuidado de quem se inicia nas letras com a vitalidade de um veterano. Com a vantagem de não repetir os erros dos consagrados, revelando as próprias qualidades, e já enriquecendo a literatura pernambucana que já está reclamando sangue novo ficcional, mesmo com uma geração inteira escrevendo, publicando e sendo reconhecida no Brasil e nas inúmeras traduções. João Paulo Parisio é o continuador da ficção pernambucana que se renova e se enriquece a cada instante.
NOTA
O texto Um dia de mormaço pela Conde da Boa Vista foi publicado originalmente no suplemento Pernambuco.