O olhar do personagem em Erico Verissimo

A preocupação com a distribuição espacial dos personagens, harmonizando a cena de forma exemplar
Erico Verissimo, autor de “Incidente em Antares”
01/08/2023

A recente publicação de obras do notável e insubstituível Erico Verissimo nos leva a refletir sobre a importância do olhar do personagem na construção das cenas nos romances do autor. Aí se revela e se realiza a grandeza deste autor que faz imensa falta à literatura.

Vejamos estes exemplos tão claros e definitivos em cenas nas quais os personagens deixam de ser personagens — o que já seria muito — para se transformar em humanos, naquele sentido em que ocupam o espaço do sentimento, do sangue pulsando nas veias, da respiração em saltos:

Aqui, registre-se a distribuição espacial dos personagens, harmonizando a cena de forma exemplar, mesmo com o destaque do conflito inquietante entre eles:

Sente gana de gritar-lhe: “Volte para o quarto! Não se meta onde não é chamado. Não se meta onde não é chamado. Não compreende que isto é um assunto de família?”.

O conflito espacial psicológico:

Mas domina-se, murmura apenas, sem o olhar para o outro: “Não. Obrigado”. Bibi aparece no alto da escada. Floriano ergue a cabeça. A perna da mulher de Sandoval, com um palmo de coxa nua, escapa-se pra abertura do quimono vermelho. Malgrado seu, Floriano identifica a irmã com a amante do pai, e isso o deixa de tal forma constrangido, que ele não tem coragem de encará-la, como se a rapariga tivesse realmente acabado de cometer um incesto.

Observa-se que na primeira frase: “sem o olhar para o outro”, parece distorcer a teoria do olhar do personagem. Mesmo assim, o olhar já foi realizado e, por isso, a frase seguinte: “não tem coragem de encará-la”. Mesmo na cena se completa, autônoma.

Olha, mas não encara. Basta este detalhe para adensar o conflito que se revela inteiro na distribuição espacial dos personagens, na exposição do drama e na agonia interior.

E continua de forma a trazer os personagens ao primeiro plano como se vê, por exemplo, no teatro ou no cinema:

Lá em cima no corredor sombrio encontra Sílvia. Por alguns segundos ficam parados um à frente do outro em silêncio. Floriano sente-se tomado de um trêmulo, terno desejo de abraçar a cunhada junto ao peito, beijar-lhe as faces, os olhos, os cabelos, e sussurrar-lhe aos ouvidos palavras de amor. Estonteia-o a impressão de que não só o Velho, mas ele também, está em perigo de vida, e talvez, e talvez seja esta a última oportunidade para a grande e temida confissão… Mas censura-se e despreza-se por causa destes sentimentos. Sílvia é a mulher legítima do seu irmão… E a poucos passos dali seu pai talvez esteja em agonia.

Sem dizer palavra precipita-se para o quarto do doente.

Tudo isso evita o dramalhão e faz a situação tornar-se tensa sem descambar para o horroroso. O equilíbrio espacial se manifesta do jogo dos olhares. Faz, assim, com que o monólogo seja comum a todos os personagens. Só o conhecedor de toda esta técnica pode alcançar resultado tão notável. Este é um caminho para estudos e exames, não para repetições e imitações. O estudo sistemático e os exercícios levam a novas técnicas individuais.

Raimundo Carrero

É escritor. Autor, entre outros, de Seria uma noite sombria Minha alma é irmã de Deus. 

Rascunho