Mario Vargas Llosa é desses escritores que desafiam os leitores e os críticos, permanentemente, com técnicas revolucionárias, mesmo quando o texto parece simples e, de certa forma, conservador. Em O sonho do celta, lançado recentemente no Brasil pela Alfaguara, Llosa explora, de maneira inovadora, o discurso indireto livre com o diálogo entrecruzado, algo que parecia impossível. São técnicas criadas por Flaubert, mas renovadas e reinventadas por este Prêmio Nobel de Literatura, aplaudido e reverenciado por colegas e estudiosos de todo o mundo. É preciso destacar, ainda, que com sua incrível habilidade de sedutor, Vargas Llosa manipula, de forma sutil, a arte de conquistar o leitor. No entanto, para refletir sobre as suas técnicas é preciso conhecer os seus textos sobre narrativas, sobretudo A orgia perpétua, em que ele examina, em detalhes, o romance Madame Bovary, de Flaubert, além de Cartas a um jovem escritor, detendo-se nas resenhas que escreve para jornais e revistas do mundo inteiro. Por tudo isso, é um dos raríssimos críticos que também é um criador de extrema qualidade. Exuberante na criação, é notável na reinvenção de técnicas literárias, estabelecendo-se como um James Joyce, capaz de recriar o humano na sua aventura criadora.
Ele conhece, mais do que qualquer outro prosador, a intimidade da narrativa. Usa desde o início o discurso indireto livre para que o leitor logo descubra a psicologia dos personagens, as inquietações, as certezas, as dúvidas, dando a impressão de que é um texto em terceira pessoa, produto do narrador sabe-tudo — é a falsa terceira pessoa, momento em que o autor usa a terceira pessoa com técnica de primeira. É preciso, então, que o leitor se aproxime muito da narrativa, de modo a distinguir as duas vozes — a do narrador e a do personagem. Quem está contando? Quem está falando? Mesmo quando usa a terceira pessoa é preciso estar atento porque se trata da voz do personagem, como se percebe, na primeira ou numa falsa terceira pessoa. Na abertura de O sonho do celta, Vargas Llosa usa a riqueza das vozes internas, mesmo que o leitor comum não observe. Assim é o texto:
Quando abriram a porta da cela, junto com o jato de luz e um golpe de vento também entrou o barulho da rua, que as paredes de pedra abafavam, e Roger acordou, assustado. Piscando, ainda confuso, tentando se acalmar, viu, encostada no vão da porta, a silhueta do xerife. O rosto flácido, com um bigode louro e olhinhos maledicentes, o observava com uma antipatia que nunca tentou disfarçar.
Na falsa terceira pessoa, a narrativa ganha força de confissão mesmo quando o leitor comum não percebe ou só percebe mais tarde: “Eis uma pessoa que ia sofrer se o governo inglês lhe concedesse o pedido de clemência”.
Seria um único narrador? Aquele tal narrador onisciente que nós conhecemos na tradição? Que tudo diz? Que tudo afirma? E vê muito mais do que se pode imaginar? Nada disso, o que temos aí é um texto dialogal, que se realiza entre o narrador inominado e o personagem Roger.
1. Voz do narrador — “Quando abriram a porta da cela”.
Quem sabe o que aconteceu, na perspectiva da intimidade do texto? Quem sabe é Roger, que vive a solidão e o terror do cárcere, sobretudo aquele cárcere terrível, com a força de uma prisão da Idade Média. Portanto, ele agora é narrador, para dar sentido de verdade à narrativa, iniciando o diálogo com o narrador onisciente:
2. Voz de Roger — “junto com o jato de luz e um golpe de vento (…) que as paredes de pedra abafavam”.
Só quem pode dizer isso é ele, que vive o terror e a danação da circunstância, para o narrador concluir:
3. Voz do narrador — “e Roger acordou, assustado”. Logo depois, o narrador continua: “Piscando”.
4. Voz de Roger — “ainda confuso, tentando se acalmar”.
5. Voz do narrador — “viu, encostada no vão da porta, a silhueta do xerife”.
O que Roger viu para que conte com tantas minúcias?
6. Voz de Roger — “(…) a silhueta do xerife. O rosto flácido, com um bigode louro e olhinhos maledicentes, o [me] observava com uma antipatia que nunca tentou disfarçar”. Conclusão de Roger.
7. Voz de Roger, peremptória e clara — “Eis uma pessoa que ia sofrer se o governo inglês [me] lhe concedesse o pedido de clemência”.
É um texto extremamente sofisticado, para um leitor inteligente e atento, mesmo parecendo comum, ainda que bem escrito. Em seguida, vem a voz do xerife, marcada pelo travessão, diálogo direto: — Visita.
Outra vez o narrador, numa marcação da fala: “murmurou o xerife, sem tirar os olhos dele”.
Reunião de técnicas
A técnica vai se adensando e se sofisticando, agora com o discurso indireto livre, o diálogo entrecruzado, narrador onisciente e, como vimos antes, diálogo direto e tradicional.
Quando chegamos à página 189 — embora a técnica se apresente em muitas ocasiões —, percebemos como o diálogo indireto livre é realizado em toda sua plenitude, com intervenções de outros personagens dentro da fala com travessão, o que dá a impressão de uma só voz, a voz única de quem narra, conforme nos ensina a tradição
Todos se sentaram e começaram a servir-se das diversas travessas. Os membros da Comissão tinham passado a tarde percorrendo as instalações de La Chorrera e, com a ajuda de Bishop, conversando com os funcionários da administração e dos depósitos. Todos pareciam cansados e com pouca vontade de falar. Teriam passado neste primeiro dia por experiências tão deprimentes como as suas?
Percebe-se bem que o texto começa com o narrador organizador: “Todos se sentaram e começaram a servir-se das diversas travessas. Os membros da Comissão tinham passado a tarde percorrendo as instalações de La Chamorra e, com a ajuda de Bishop”.
1. Voz de Bishop — “conversando com os funcionários da administração e dos depósitos. Todos pareciam cansados e com pouca vontade de falar”.
2. Voz de Roger (aliás, voz interior, sem ser dita em voz alta, o pensamento do personagem) — “Teriam passado neste primeiro dia por experiências tão deprimentes como as suas?”. Mais adiante, o leitor saberá que experiências eram essas.
3. “Juan Tizón ofereceu vinho, mas, como advertiu que com o transporte e o clima o vinho francês chegava aqui todo sacolejado e às vezes ácido, todos preferiram continuar com o uísque.” A voz de Tizón substitui o narrador: “com o transporte e o clima o vinho francês chegava aqui todo sacolejado e às vezes ácido”.
4. Volta o narrador e, em seguida, Roger:
No meio da refeição Roger comentou, dando uma olhada nos índios que serviam:
— Vi muitos índios e índias de La Chorrera têm cicatrizes nas costas, nas nádegas e nas coxas. Esta moça, por exemplo [aqui estão as experiências que ele viu]. Quantas chicotadas eles recebem, em geral, quando são castigados?
Dentro da fala de Roger, surge a pergunta de Casement, só mais tarde confirmada: “Fez-se um silêncio generalizado, no qual o chiado dos lampiões e o zum-zum dos insetos aumentaram. Todos olharam para Juan Tizón, muitos sérios”. Em seguida vem a resposta de Tizón, e não de Roger, como é de se esperar. Aqui se observa o diálogo entrecruzado dentro do discurso indireto livre:
— Na maior parte das vezes eles próprios fazem essas cicatrizes — disse este, incomodado. — Têm uns ritos de iniciação bastante bárbaros nas tribos, vocês sabem, como fazer furos no rosto, nos lábios, nas orelhas, no nariz, para enfiar anéis, dentes e todo tipo de penduricalhos. Não nego que algumas cicatrizes possam ser obra de capatazes que não respeitam as determinações da Companhia. O nosso regulamento proíbe categoricamente os castigos físicos.
Agora aparece a voz de Casement, esclarecendo o aparecimento de sua pergunta na fala de Roger (diálogo entrecruzado):
— Minha pergunta não se referia a isto, senhor Tizón — desculpou-se Casement. — E sim ao fato de que, embora haja tantas cicatrizes, não vi nenhum índio com a marca da Companhia no corpo.
Vejam bem, Casement responde a Tizón, num diálogo direto, em indagação que foi feita dentro do texto, que parecia ser de Roger, pelo menos na forma como nos acostumamos a ler.
São elaborações como estas que, sutilmente, revolucionam toda a arte do romance ou, por extensão, revolucionam toda a arte de narrar. E que, sem dúvida, seduzem o leitor. Vargas Llosa seduz em um piscar de olhos, de uma frase para outra, às vezes de uma palavra para outra, e depois chama pra dançar.