Epopeia ou lírica — tudo junto e misturado

"On the road" mudou a história da literatura ocidental
Jack Kerouac, autor de “On the road”
11/05/2017

O livro que mudou a história da literatura ocidental é, ao mesmo tempo, uma lírica e uma epopeia, ao impensável até sua eclosão. Trata-se de On the road, de Jack Kerouac, que neste ano completa 60 anos de publicação. Conta a história pessoal do seu principal personagem, Sal Paradise, seus conflitos, suas inquietações íntimas, e é, também, a narrativa, os tormentos e as glórias, os feitos e os fracassos de uma geração em todo o mundo, por assim dizer, de um povo inteiro. Dessa maneira, Sal Paradise é o alter ego de Kerouac, e o símbolo desta geração, representante de Ulisses ou Odisseu, enfrentando pequenas batalhas, lutas e metáforas para conquistar seus objetivos.

A epopeia de Jack — ou Sal Paradise — acompanhado por Dean Moriarty — Neal Cassidy — é narrada na primeira pessoa, que dá ao livro um tom intimista, constituindo-se aí numa lírica, com as graves inquietações que levam o personagem central a rever suas preocupações — enquanto percorre os Estados Unidos — de Leste a Oeste, passando pelo México, em constantes idas e vindas, em meio a farras homéricas, com abuso de drogas e a presença de garotas que fazem sexo até o excesso, de forma a apresentar um mundo em transformação, sobretudo os Estados Unidos, que começam a superar o decantado modo de vida americano, romântico e cheio de escrúpulos.

Este novo mundo enfeitiçará a Europa e outros continentes, sobretudo criando aquilo que se denominou mais tarde de hippies, alterando, inteiramente, as relações humanas, de forma a ultrapassar o conservadorismo e a fazer eco à insatisfação dos jovens que reivindicavam maior liberdade, realizada metaforicamente em On the road e, ainda mais tarde, em toda a obra de Kerouac, que levou para os seus livros episódios, circunstâncias e questionamentos, que não puderam aparecer no romance principal.

São livros posteriores de Kerouac — Os vagabundos iluminados, considerado pela crítica, seu livro mais importantes — Viajante solitário, Tristessa. Para os críticos, Os vagabundos iluminados é o melhor livro do autor porque ali está o estilo turbinado, superadjetivado, que exala humor, sabedoria e contagiante gosto pela vida. Temos aqui — escrevem — uma geração beat mais beatífica, mais otimista e mais tranquila. Em suma: mais iluminada.

A questão é que On the road, embora mais amargo, cria uma nova literatura que, segundo Norman Mailer, “foi um sopro de ar fresco”… “uma força, uma tragédia, um triunfo e uma influência duradoura, e essa influência ainda está entre nós…” No entanto, para Truman Capote não passava apenas de um jeito de datilografar.

Mas para chegar ao estilo de On the road — ou ao antiestilo, o estilo das coisas que não têm estilo, para usar a expressão de Alejo Carpentier —Kerouac precisou estudar muito, construir e desconstruir, passando pela influência dos gigantes da literatura, a exemplo de Tolstoi, de Hemingway, de Tom Wolfe, de Saroyan. Ele confessa: “Aos dezessete anos decidi me tornar escritor, influenciado por Sebastian Sampas, jovem poeta local que mais tarde viria a morrer na invasão da praia de Anzio; li a vida de Jack London aos dezoito anos e também decidi me tornar um aventureiro, um viajante solitário”.

Kerouac acrescenta: “meu primeiro romance formal foi The town and the city, escrito na tradição de trabalho longo e revisão, de 1946 a 1948, publicado pela Harcourt Brace em 1950. Então descobri a “prosa espontânea e escrevi, digamos, The subterraneans em três noites e escrevi On the road em três semanas”.

Observamos assim que a escrita espontânea não foi tão espontânea assim e exigiu muitos anos de estudo. Até que Kerouac começou a receber as cartas do seu amigo Neil Cassidy e observou que ele escrevia como quem fala. Começou a imitar o estilo do amigo. Nasce a escrita espontânea e, com ela, On the road. Por isso, a lírica e a epopeia. Um autor que definitivamente marcou a obra de Kerouac é Louis Ferdinand Celine, sobretudo o Celine de Viagem ao fim da noite e Morte a crédito.

Raimundo Carrero

É escritor. Autor, entre outros, de Seria uma noite sombria Minha alma é irmã de Deus. 

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