Cuidado, essa pessoa é falsa e engana muito

A sofisticada técnica narrativa de escrever em terceira pessoa com foco na primeira
Gustave Flaubert: bom exemplo em Educação sentimental.
01/10/2010

Falsa? Uma pessoa falsa é gente perigosa, perigosa e traiçoeira. Mas não é dessa pessoa que eu quero falar, embora a literatura esteja cheia de personagens assim. A começar por Dom Casmurro, de Machado de Assis. Na verdade, estou falando de uma técnica narrativa sofisticada, embora possa ser lida com facilidade. Ou seja, o texto é escrito em terceira pessoa com foco na primeira. Um exemplo que aparece em Flaubert, no romance Educação sentimental:

“Teria que continuar morando num quarto andar, ter como criado o porteiro, e aparecer com umas pobres luvas pretas desbotadas, um chapéu ensebado, a mesma sobrecasaca durante todo o ano. Não! Não! Nunca! Contudo, a existência sem ela era insuportável. Havia muita gente que vivia bem, mesmo não tendo fortuna, por exemplo Deslauriers; — e achou-se covarde por dar tamanha importância a coisas insignificantes. Talvez a miséria lhe centuplicasse os dons. Exaltou-se, pensando nos grandes homens que trabalhavam em mansardas”.

Basta observar bem o texto para verificar que as palavras estão de tal forma juntas às do personagem que parece não haver um narrador autônomo. A terceira pessoa se confunde com a primeira que é quase impossível separá-las, com exceção do pretérito perfeito que vai aparecendo no fim do parágrafo: “achou-se” e “exaltou-se”. Aí há, com certeza, um distanciamento proposital para dar a impressão de que é a terceira pessoa. Isso acontece muito na obra de Flaubert.

Mas quando e por que usar a falsa terceira pessoa — posteriormente falaremos na falsa primeira pessoa. Simples. Na narrativa convencional, quase sempre — ou sempre — as peripécias são trabalhadas de forma a provocar o leitor apaixonado pelo enredo. Na obra mais sofisticada, o narrador recorre à terceira pessoa, de forma que disfarça a pessoa gramatical e é aí que vai desenvolvendo a trama. O leitor está sempre disposto a aceitar o que lhe é apresentado, o que está escrito, quase sempre apenas lê. E lê e lê. E aquilo que parecia uma informação única do narrador, com a impressão de todo-poderoso e onisciente, embora inominado, é na verdade mistério ou segredo dominado pelo personagem. Ele diz, ela afirma, ele revela, prepara o leitor, que nem percebe. Às vezes passa todo o romance sem perceber.

Um pouco mais à frente, o leitor vai encontrar um diálogo com as vozes claras de Frédéric e a Senhora Moreau, embora pareça ainda mais uma vez a narrativa. Ou para alguém mais esperto, um diálogo narrativo na terceira pessoa. Observem:

“À noite, declarou à mãe que ia regressar a Paris; a Senhora Moreau ficou surpreendia e indignada. Era uma loucura, um absurdo. Era melhor seguir os conselhos que lhe dera, isto é, ficar junto dela, num cartório. Frédéric encolheu os ombros: ‘Que idéia’, considerando aquela proposta um absurdo”.

Talvez seja mais fácil por causa da marcação ou dos verbos dicendi: “declarou”, ”era” e “encolheu”, por exemplo. O diálogo aparece mais vivo. Mais visível, até. Mas explica melhor a questão da falsa terceira pessoa com muita clareza: os personagens estão falando, conversando, e só num momento uma palavra aparece entre aspas: “Que idéia!”. Mesmo assim é uma palavra que possivelmente não foi dita. O verbo que vem depois — “considerou” — não parece muito claro, não mostra a intenção verdadeira do personagem.

Essa técnica vem se juntar a outra que mostra o estado de espírito do personagem: o cenário humano. A princípio dá a entender que o cenário-começo de Educação sentimental é narrado por um narrador tradicional, inominado e onisciente. Não é. A narrativa é do próprio Frédéric, que, por sinal, não aparece ali:

“No dia 15 de setembro de 1840, o Ville-de-Montreou, pronto a largar, soltava os seus grossos rolos de fumo junto do Cais Saint-Bernard. Gente chegava esbaforida; barricas, cordas, cestos de roupas dificultavam a circulação; os marujos não respondiam a ninguém; as pessoas atropelavam-se; entre os dois cilindros eram içadas encomendas, e a vozeria perdia-se no silvo do vapor das máquinas que, escapando por entre as chapas de zinco, envolvia a cena numa nuvem esbranquiçada, enquanto a sineta, à proa, tocava sem parar”.

Dessa forma, podemos verificar que o cenário humano é descrito em falsa terceira pessoa pelo personagem, movido pelas suas emoções e preparando a ambientação onde transcorrerão os primeiros movimentos que conduzirão o romance. Aí surge o amor de Frédéric pela Senhora Arnoux no episódio do xale e os personagens mais importante são apresentados. É curioso registrar, ainda, que Flaubert escolheu, justamente, um navio de passageiros para criar as condições emocionais da história.

Exercício: Escrever um texto na primeira pessoa e depois transformá-lo na falsa terceira pessoa, mostrando o estado de espírito de um personagem.

Raimundo Carrero

É escritor. Autor, entre outros, de Seria uma noite sombria Minha alma é irmã de Deus. 

Rascunho