1.
Os motores de busca gostam de propor questões a seus usuários, no sentido de abreviar e facilitar as perguntas óbvias. A primeira, sem variações originais, sempre será, por exemplo: “Quem é o maior pintor italiano?”, ou “Quem são os maiores astrofísicos contemporâneos?” ou, nosso caso, “Quem são os maiores escritores russos?” — esses critérios, mais próprios das apostas num hipódromo, perdem qualquer sentido perante a impossibilidade de mensurar a qualidade estética de cada obra em relação às obras de outros artistas. Isso nos leva ao cômico terreno do vale-tudo, e a santíssima trindade dos romancistas russos do século 19 foi, assim, fixada com dois polos irremovíveis, Tolstói e Dostoievski, mas quando pensam que é necessário um terceiro nome, esse varia, num tipo de roleta. Um dos lembrados é Turguêniev. Embora eu abomine as trindades laicas, é bom que o autor de Pais e filhos venha à tona. A vacilação em torno de seu nome deve-se a um fato extraliterário: ele era “muito ocidental”, não só pela natureza de suas preocupações como pelo fato de ter vivido na Alemanha, em Londres e, por fim, Paris, onde morreu. Os russos viam-no de viés, e os europeus ocidentais, se não o adoravam, com ele descobriram a respeitabilíssima literatura russa.
2.
Um mérito evidente de Turguêniev foi o de ser o precursor de uma vertente que revelou e trouxe no seu rasto os grandes romances de Dostoiévski e Tolstói, e isto significa que Pais e filhos foi seminal, mas não só: instituiu um modo altamente moderno de narrar, que contempla as múltiplas sensações e percepções das diferentes personagens, algo que eu me atreveria denominar de focalização circular múltipla. Cada personagem tem sua vez de mostrar a sua verdade, isto é, de agir dentro do enredo com protagonismo efêmero em seu momento, para voltar depois, com o mesmo protagonismo e trazendo consigo o avanço da história. Essa escolha técnica confere a Pais e filhos uma inesperada leveza em meio ao pesadume estrutural da maioria dos autores do século 19.
3.
Falei em enredo, e é hora de dizer que ele se passa no meio aristocrático da Rússia imperial, mas as personagens centrais praticam uma espécie de pensamento liberal. Um deles (Nicolai Kirsánov), o pai) deu liberdade a seus servos, passando a utilizar, em sua propriedade rural, apenas trabalhadores pagos. Por outro lado, o filho (Arkádi) compreende que seu pai, viúvo, coabite com uma jovem em sua própria casa e tenha um filho com ela. Uma das personagens, das mais relevantes (Bazárov, o amigo e guru do filho), é adepto do niilismo, uma doutrina filosófica emergente que, em essência, não aceitava governos, nem qualquer outra autoridade, nem transcendência para a vida, nem da moral, pregando uma revolução à raiz para mudar tudo etc., isso o que se sabe da história da cultura. Arkádi tem, em relação a ele, uma total subserviência intelectual, o que é causa de dissonância com o pai. O irmão de Kirsánov (Pável), esse, já faz contraponto com todos os pensamentos avançados, preso aos antigos valores da nobreza mostrando-se antipático, quase uma caricatura. Eis aí um caldo de cultura perigoso, que, posto num livro, fez com que Turguêniev fosse questionado por trazer à tona essas situações constrangedoras — sem que tomasse partido (no fim das contas, a opção estrutural exposta no parágrafo anterior não agradou a seus contemporâneos). Essas restrições fizeram com que abandonasse a Rússia e, como vimos, buscar ares mais respiráveis noutros países. A França, por exemplo, já tinha feito a sua revolução, e nem mesmo a Restauração Bourbon, com seu revanchismo, nem os sucessivos governos conservadores, conseguira apagar os princípios da Liberdade – Igualdade – Fraternidade. Lá, ele foi acolhido com benevolência e, até, com admiração.
4.
O propósito de Pais e filhos, em especial no desenho das personagens, é mutável, e eis outra notabilidade desse romance. No decorrer do enredo, seus figurantes alteram seu modo de entender o conflito e, até, suas convicções: o niilista, o que era contra o casamento e o amor, se apaixona; o pai passa a entender melhor seu filho, mas sem aderir aos novos tempos, e o filho acaba por estabelecer uma éntente com ambos — diríamos assim: Arkádi é o homem possível naquele redemoinho russo, em que se digladiavam ideias radicais e moderadas; essa estrutura política veio a se profundar a partir a revolução de 1917, gerando consequências que, depois de lutas internas, acabaram com a queda do muro de Berlim.
5.
Então, Pais e filhos é um romance político? Não me arriscaria a dar a tentadora resposta positiva; para já, é um romance, e qualquer qualificativo o aviltaria como obra de arte. E é obra de arte pela força persuasiva da verdade criada por Turguêniev, para a qual ele utiliza os recursos descritivos e conotativos disponíveis pela literatura e por sua inventividade pessoal, que não deixaram de incluir paisagens ainda devedoras da estética romântica:
Assim pensava Arkádi… e enquanto isso a primavera reinava. Ao redor, predominava uma tonalidade verde ostentava reflexos dourados. Tudo se agitava de forma grandiosa e dócil, ondulando-se e brilhando ao sopro da brisa quente. Tudo: as árvores, os arbustos e a relva. (…) Arkádi observava a paisagem.
A primeira e a última frase situam a paisagem na cabeça de Arkádi, que a examina com uma perspectiva que o situa entre as pessoas sonhadoras e otimistas, capazes de explicar todo o seu desempenho no romance e, ao final, representar uma saída para as forças em litígio. Quando se trata de descrição de personagens, Turguêniev nunca se entrega a uma apresentação anódina e fotográfica, mas sempre a utiliza em função da história. Para caracterizar a sensaboria arrogante de Pável, mostra-o apaixonado por alguém que o merece, uma frívola Princesa R.:
[No seu olhar] …brilhava algo fora do normal, mesmo quando sua boca pronunciava ou murmurava as frases mais tolas. (…) Pável Petrovich a conheceu num baile, dançaram a mazurca, durante a qual ela não falou nenhuma palavra que demonstrasse inteligência, mas ele se apaixonou perdidamente por ela.
Observe-se a potência da adversativa, em que evidencia mais o que é Pável do que é a Princesa R. Não custa extrair uma consideração: todos os conceitos, os juízos, soam mais fortes quando o leitor tem contato com eles através de referências oblíquas, pois, com esse artifício, é atribuído a ele, o leitor, a tarefa e o prazer de descobri-los por si próprios. Isso é técnica. Bem simples.
6.
Quando uma obra literária segue lida depois da morte do autor (ao contrário de hoje, quando a obra é enterrada junto com ele), e seus leitores ultrapassam gerações e a qualidade estética é irretocável, essa obra tem plenas condições para se consagrar no cânone. Pais e filhos acrescenta a tudo isso a lucidez com que entendeu seu tempo e as relações sociais e familiares, sabendo como transpô-las para o bem simbólico por excelência, a literatura. Vai para a mochila, por certo.