O Pai Goriot

Romance de Balzac assume a “verdade” interior, proposta pelo autor, e a exterior, no momento histórico em que se situa
Ilustração: Balzac por Fabio Abreu
01/08/2023

1.
Numa época em que os acadêmicos — eu junto — discutem questões relativas aos gêneros literários, percorrendo uma estrada que quase sempre termina numa encruzilhada, bom é ler, nas primeiras páginas de O Pai Goriot, a afirmativa de Balzac: “Ah! saibam: este drama não é uma ficção, nem um romance. All is true, ele é tão verdadeiro que todos podem reconhecer esses elementos em si mesmos, em seu coração talvez!”. Longe de mil teorias inúteis, o grande e irregular escritor [mais grande do que irregular] dá-nos uma lição e resolve a charada. O “verdadeiro”, como se percebe, refere-se aos nossos sentimentos e nossas andanças emocionais, as quais sentimos representadas e discutidas em qualquer obra literária que mereça este nome. Esta perspectiva, em que reconhecemos algo de cínico e escapista, entretanto, permite dizer com limpidez, que todo romance é verdadeiro, sem aspas nem itálico. Mas Pai Goriot não é verdadeiro apenas por isso. É por aí que vamos nesta coluna.

2.
No quadro dos sentimentos e emoções, de que falava Balzac, a personagem central é um prato refinado na mão da psicanálise. Para já, ele é digno de alguma cerimônia, porque tratam-no de “Père”, que seria melhor traduzido como “Seu” [senhor], na linguagem coloquial brasileira; também é difícil aceitar o “Tio”, como o traduziram em Portugal, e cabe bem o “Velho”, como em versões norte-americanas. Fórmulas de tratamento à parte, Goriot é um homem de idade, pai de duas filhas “bem casadas”, e que vive à barra da miséria numa sórdida pensão parisiense. Além de possuir uma boa renda vitalícia, ele guardava, em seu quarto, verdadeiros tesouros de prata e vermeil, para eventualidades. Essas eventualidades logo se tornam praxe, quando precisou socorrer as filhas, cujos casamentos não eram tão opulentos quanto o imaginado, e cujo dote ele havia pagado. Elas o ignoravam publicamente, procuravam-no em privado [para pedir dinheiro] e envergonham-se dele. Um quadro patético, mas não extraordinário. Goriot foi lentamente passando a ocupar quartos mais baratos dentro da pensão e deixando de jantar fora. Roupa, não trocava; seu casaco apresentava-se puído.

3.
Um quadro de altruísmo paternal, poderíamos dizer com toda a segurança, que o fazia sacrificar-se pelas filhas. Engana-se, porém, quem pensa que o altruísmo é via de mão única; já o dr. Freud dizia, em O mal-estar da civilização, que a virtude deve ser recompensada ainda nesta vida; caso contrário, a ética pregará em vão. Sim, Goriot tinha sua recompensa, que era a visão das suas filhas a passearem pelas avenidas em suas luxuosas carruagens. Isso lhe bastava, isso o fazia feliz, e, dentro do pensamento existencialista à Sartre, a vida encontrava seu sentido. Então, dentro de uma lógica de resultado, a única pessoa feliz, naquela pensão, e talvez em toda Paris, era Goriot. Isso contraria as interpretações dominantes sobre essa personagem, que focam apenas em sua generosidade incondicional; sendo assim, nós, que nos julgamos incapazes dessa inatingível qualidade, somos reconfortados em nossas pequenas bondades morais com recompensas invisíveis aos outros. Noutras palavras: nosso Goriot nos convence, e isso é obra do ficcionista que o criou.

4.
Já no plano coletivo, precisamos de uma breve recuperação. Ao surgir esse romance em forma de livro, em 1835 — e mesmo na época da ação, 1818 —, a França experimentava alguma paz política. Passada a Revolução, passado o terremoto napoleônico e restaurados os Bourbon, a burguesia sossegava em seus privilégios. O surgimento das grandes fortunas instituía uma nova classe, a que se somavam arrivistas, especuladores, patifes de toda ordem, escolhos da nobreza antiga e da recente, novos comerciantes e novos industriais; formava-se um quadro díspar em gostos e, por que não, de vulgaridades, com seu quê de burlesco. O próprio Balzac era um exemplar vivo dessas personagens; por exemplo: atulhou a casa com móveis de antiquário, querendo impressionar sua esposa, oriunda da aristocracia e que, a propósito, quase teve um desmaio ao ver aquele bricabraque empoeirado. Goriot era da espécie de Balzac — seus bens foram adquiridos no mesmo período de transes. Se, agora, pensarmos sob o ponto de vista estético, estávamos no final do Romantismo, cujos epígonos ainda pululavam nos salões, mas se abria espaço para uma representação mais autêntica da sociedade. Nada melhor para um cérebro inquieto como Balzac. Assim, O Pai Goriot é obra que só faz sentido se publicada apenas, como o foi, quando as novas forças sociais emergiam.

5.
Dadas as últimas circunstâncias, não seria de estranhar se a pensão fosse o microcosmo da nova sociedade. Mas Balzac não tomou esse caminho óbvio, preferindo representar os excluídos. Assim, eram co-hóspedes da viúva Vauquer pessoas variáveis em fortuna, ingênuos e ambiciosos, outros boas pessoas, outros cheios de mistérios quanto ao passado e ao futuro e, ainda, notórios meliantes. Ali conviviam, por exemplo, Eugène de Rastignac, poeta lírico e sonhador originário da província, que logo é iniciado nas patranhas parisienses; ainda Vautrin, foragido da polícia e que dela tenta escapar. Todos perfeitos outsiders. Seria melhor Goriot passar ao longe dessa fauna e, no entanto, devia sentar-se à mesma mesa e ser vítima de piadas e intromissões em sua vida — o que nomeadamente acontece quando ele recebe suas filhas, perfumadas e elegantes, que sobem ao seu miserável quarto, com isso incendiando as fofocas lideradas pela dona da pensão.

6.
No meio desse quadro, Goriot cresce em dinâmica como personagem. Definha de apoplexia e de amor pelas filhas, e, mesmo que na hora final venha a reclamar do abandono, ele o faz de coração preenchido de ternura. Já sua condição social crepuscular só aumenta sua inteireza literária. Ele não é o rico que ostenta seu poder sobre o pobre, nem o pobre que se submete ao rico. Essa semiliberdade lhe permite que faça escolhas, inclusive pelo apagamento existencial e pela assunção de um estilo que o faz único dentre a imensa galeria de personagens balzaquianas. Daí o seu êxito entre os leitores, que têm o bônus de o reencontrar em vários romances de A comédia humana, esse imenso painel que o poderoso ficcionista construiu no decorrer da vida. Assim, O Pai Goriot assume a “verdade” — interior, do “coração”, propugnada por Balzac — e a exterior, no momento histórico que lhe coube viver e, portanto, por todas essas verdades, ocupa um lugar de proeminência em nossa mochila canônica.

Luiz Antonio de Assis Brasil

É romancista. Professor há 35 anos da Oficina de Criação Literária da PUC-RS. Autor de Escrever ficção (Companhia das Letras, 2019), entre outros.

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