A fera na selva

Conhecimento do mundo e a sensibilidade são fundamentais para adentrar o mundo ficcional de Henry James
Henry James, autor de A fera na selva
01/10/2023

1.
Se há algo que melhor caracterize Henry James é a abominação ao explícito; ele joga toda sua arte no subentendido. Para tal, é preciso que o leitor tenha duas condições que lhe permitam acesso a esse subentendido, isto é, às camadas mais profundas da história e das personagens: o conhecimento do mundo e a sensibilidade. E, claro, que o ficcionista o seja por completo, exercendo seu ofício com a necessária competência para que, ao fim de tudo, a fruição do texto transforme-se num sedutor jogo de esconde-esconde. Obtidas essas condições necessárias e suficientes, teremos uma obra-prima. E é isso que sucede com A fera na selva. Preciso é conhecer o mundo para entender os longos diálogos entre a dama May Bartram e o dandy John Marcher, ambos maduros em idade e ele, pelo menos, apenas em idade. Também é preciso conhecer algo de história e sociologia, porque são feitas alusões à cultura da época, seus teres e haveres, informações, essas, levadas num tom escolhidamente superficial. Quanto à sensibilidade, bem, o leitor deve ser capaz de entender as pequenas ações, as meias-palavras, as alusões indiretas de parte a parte e, em especial, ter sempre em conta uma entidade que paira nessa relação: John, tendo em vista a banalidade de seu spleen, está à espera de algum exótico fato que o transforme por completo, tal como acontece quando alguém é vítima de algo parecido ao inesperado bote de uma fera em plena selva; se alguém se lembrou do Jacinto de Tormes, de A cidade e as serras, não foi por acaso. Jacinto e John são um par de vasos chineses, mas com flores díspares.

2.
Enquanto não acontece o ataque da fera, ela e ele vão construindo seus mundos que, se nela, ressumam a alguma coisa de trágico e sinistro, mortal, nele ocorre apenas a reiteração do suceder dos dias, dos meses e dos anos em que “não acontece nada e termina de maneira tola”, como me disse um enfadado aluno. No seminário que tivemos em aula, esse aluno, por inteligente, se apercebeu que sua falta de boa vontade o levou a não se fixar em pontos da novela aos quais dedicara atenção fugaz ou, pelo menos, displicente e descontextualizada. Pois aí, justo nesses pontos, é que está toda a história. Muitas ficções, e essa é uma delas, pedem a participação ativa do leitor. Dá trabalho? Oh, sim, e prazer e deslumbramento, o qual consiste em descoberta de uma devastadora e vertiginosa história de amor que termina de modo tão inesperado quanto terrível; é quando tudo se revela, e vamos a ver: a natureza do bote da fera era tão próxima como desconhecida em sua magnitude.

3.
Estamos perante uma dessas novelas que põem toda sua razão de ser no final — na última página, digamos — e isso parece ser uma qualidade esquecida pelo ficcionista amador, que não tem o bom senso de construir pacientemente a conclusão da narrativa, chegando a ela com a mesma incerteza com que a começou; em vez de final, um desastre. Henry James não, notamos, e desde a primeira linha, que é ele quem conduz o leitor e, para obter esse efeito — bom recurso técnico a aprender —, usa a focalização onisciente: “Pouco importa o que motivou a surpreendente conversa que tiveram durante o encontro…”. Pronto: o leitor já se dispõe a entender, e, mais do que isso, a fascinar-se pela novela que apenas se inicia ante seus olhos.

4.
Um dos fenômenos mais peculiares desse texto é que a utilização da onisciência não impede a sutileza indutora do subtexto — e é nos diálogos que isso aparece. Nos momentos preliminares em que ela o questiona se o bote da fera já não teria acontecido na forma de um amor, ele responde que não: “‘Eu estou aqui, você pode ver. Não foi assim tão esmagador’ [overwhelming]. / ‘Então não foi amor’, concluiu May Bartram’”.

É uma sentença, apenas, que talvez tenha passado ao largo da percepção inicial de meu aluno, mas que se fixa na mente do leitor e conduz toda a narrativa, transformando-se numa subterrânea luz que, a qualquer momento, pode iluminar a superfície até então crepuscular. O leitor sabe que a luz existe, e a busca da descoberta faz com que leitor avance as páginas com crescente apreensão. Salva está a literatura.

5.
Nada do que foi dito teria qualquer relevância não fosse a consistência do tempo, que para May e John aparece como elemento inexorável. É o tempus edax rerum, o tempo devorador das coisas, de As metamorfoses. Sabem-se animais às margens da extinção, sabem que sua crônica irá se perder no esquecimento da História, e que protagonizam um acontecimento único, irrepetível, sabem que a vida nos é dada como uma graça — como nos sugere Clément Rosset — mas também como um parâmetro para avaliar as transformações que sofre aquilo que os une. O tempo, elástico e invisível, se estabelece como uma deidade bifronte que premia e, em igual medida, castiga. Emaranhado na espera, John deixou-o passar e, ao fim, encontra-se indefeso em meio à mesma selva oscura de Dante, mas, à diferença deste último, uma fera o aguardava, que, afinal, vem a ser aquela luz de que falava no parágrafo 3.

6.
Efeito não desprezível é desempenhado pelo espaço, múltiplo e conotativo. Começa pela recordação de um ambiente público, em Nápoles, a que se segue um palácio britânico cheio de pessoas reunidas para um almoço. Após o almoço, em que acontece a reiteração do mito obsessivo de John, eles param na soleira do palácio, e ela insensatamente promete que o acompanhará na espera do bote da fera. A contar daí, e a partir da mudança de May para Londres, o espaço torna-se único e privado, e então acrescem as descrições dos móveis da velhice e da doença: “parecia que tudo havia sido enrolado, recolhido, guardado, de modo a que ela pudesse ficar sentada com as mãos cruzadas, sem ter mais nada a fazer. Ela já estava ‘fora daquilo tudo’ [out of it] aos olhos de Marcher”.

7.
O leitor é chamado para “entender” a obra pelo que ela não diz, e esse não-dito vem revelado apenas nessa famosa última página, em que tudo se encaixa e se resolve para John, e da forma mais triste e irremediável. Se o famigerado horror ao spoiler não me impedisse de contá-la aos leitores — quanto a mim, não me importa um zero o spoiler, pois permite a iniciantes, desde o início, perceber como o ficcionista organizou seus materiais para chegar àquele final —, fico, pelo menos, com a sensação de ter convencido os leitores de que A fera na selva se impõe como refinadíssima literatura, acessível aos cérebros atentos e espíritos compassivos e, que, por isso, merece estar em nossa mochila.

Luiz Antonio de Assis Brasil

É romancista. Professor há 35 anos da Oficina de Criação Literária da PUC-RS. Autor de Escrever ficção (Companhia das Letras, 2019), entre outros.

Rascunho