Under the same sun. Por quê?

O título do artigo deste mês refere-se à exposição Under the same sun — Latin American art today, recentemente ocorrida no Museu Guggenheim
02/10/2014

O “mesmo” sol?
O título do artigo deste mês refere-se à exposição Under the same sun Latin American art today, recentemente ocorrida no Museu Guggenheim, de Nova York, de 14 de junho a 30 de setembro, e organizada por Pablo León de la Barra.

No folheto de divulgação, explicita-se o norte do esforço.

A exposição, somos informados:

(…) examina as respostas criativas de artistas contemporâneos às complexas realidades comuns; realidades essas influenciadas por histórias coloniais e modernas, governos repressores e desigualdade social. A exposição estuda o passado e o presente da América Latina, explorando a possibilidade de futuros alternativos.

Entende-se, assim, que todos os artistas estejam reunidos sob o mesmo sol. Guarda-chuva eclético, contudo; pois, salvo engano, under the same sun, encontram-se todos os artistas. Isto é, independentemente de latitude, todos estão sob o mesmo sol. Porém, aqui, vale dizer, na América Latina, o sol deve ser mais solar, por assim dizer; afinal, a redundância é a regra de ouro do exotismo.

Não surpreende, portanto, que a última seção da mostra se denomine Tropical e seja justificada através de surpreendente atualização de clichês oitocentistas:

As obras nesta seção reconhecem os efeitos do espaço e da natureza (incluindo o clima) sobre a produção cultural, porém, defendem o argumento de que, em última instância, ser ‘tropical’ é uma questão de atitude que transcende a geografia. Tropical é usado aqui para denotar uma sensibilidade que não somente se origina entre os trópicos, mas que também diverge da racionalidade europeia e norte-americana (…).

?

Fiquei atordoado na exposição e continuo desorientado, ainda agora, enquanto escrevo.

No entanto, deixo de lado qualquer espécie de indignação adolescente.

A questão importa pelo potencial teórico.

Vejamos.

Fui ao Guggenheim atraído pela exposição Futurism­ — 1909-1944, organizada por Vivien Green, e que ocupou todos os andares do museu, numa espiral cronológica do movimento futurista, reunindo obras-chave de todas as décadas do grupo liderado por Filippo Tommaso Marinetti. Além disso, o catálogo da exposição vale por uma pequena enciclopédia do Futurismo.

Numa palavra: uma exposição-pesquisa — exemplar.

(A célebre escultura de Umberto Boccioni, “Svilluppo di una bottiglia nello spazio”, materialização dos conceitos de forma única e dinamismo sintético, não deixa de ser uma antecipação da própria estrutura espiralada do Guggenheim.)

Então.

A mostra organizada por Pablo León de la Barra reuniu 42 artistas de 16 países — incluindo latinos radicados nos Estados Unidos. Ademais, o olhar agudo do curador favoreceu uma seleção impactante de obras, pois a maioria dos trabalhos expostos conjuga conceito e fatura com raro apuro. Quase todos os trabalhos apresentados — o que não é pouco — são obras instigantes, estimuladoras de reflexões decisivas sobre o lugar denominado América Latina, e que, ao contrário, do título otimista, talvez não se beneficie desse utópico same sun.

Isto é, destaque-se a argúcia das escolhas do curador, porém, questione-se a base teórica do projeto.

Arte?
A questão, por isso mesmo, corta fundo, pois não se relaciona a um traço particular — o repertório do curador — mas a um dado de estrutura — a assimetria constitutiva do mercado simbólico transnacional.

(O dilema também é a passividade com que aceitamos o lance de dados dessa assimetria.)

O traço dominante da arte contemporânea, sua forma mesma, consiste num sistema interno de alusão e de apropriação da história da arte. Ora, se é verdade que não há época em que os artistas tenham deixado de dialogar com a tradição, na arte contemporânea esse diálogo é tanto onipresente quanto dessacralizador. Isso para não mencionar o questionamento radical dos papéis tradicionais de autor-obra-observador. Em alguma medida, a desmontagem minuciosa dos vértices desse triângulo é o modo de operação da arte contemporânea.

(E poucos foram tão longe como Hélio Oitica e Lygia Clark, cujos parangolés, bichos, penetráveis e caminhandos literalmente aboliram a figura do espectador, metamorfoseado em participador.)

Evando Nascimento, autor que em sua ficção tem aprimorado um diálogo constitutivo com as artes plásticas, recuperou o gesto característico desse entendimento da apropriação como método estético, transformando-o em técnica de escrita:

classicismo: na verdade, picasso estava restaurando o gesto clássico de imitação dos antigos, traindo seu legado com fidelidade. em novo contexto a emulação era a mesma e outra, ferida digerida, golpe de gênio. (…) o resultado foram pinturas com dupla assinatura, uma visível, a outra semi-apagada. fez isso descaradamente com inúmeros outros: poussin, velásquez, van gogh, goya, ingres. incumbe a nós reler essa escrita em palimpsesto.[1]

O paradoxo da definição do curador explode; afinal, e vale a reiteração, Under the same sun — Latin American art today “(…) examina as respostas criativas de artistas contemporâneos às complexas realidades comuns; realidades essas influenciadas por histórias coloniais e modernas, governos repressores e desigualdade social”.

Se tais palavras forem levadas a sério, a arte latino-americana contemporânea permanece uma anacrônica prisioneira do projeto nacionalista, típico do romantismo domesticado, que, em lugar de explorar as ambiguidades do sujeito moderno, contentou-se em permanecer à sombra da nação — porto seguro, onde todas as inquietações se dissolviam no emplasto da cor local.

Isto é, o curador define arte latino-americana contemporânea como se questões propriamente estéticas fossem irrelevantes — a contradição é insolúvel.

No entanto, os trabalhos selecionados por Pablo León de la Barra somente se tornam inteligíveis a partir do reconhecimento de suas alusões e apropriações irreverentes da história da arte!

Dois ou três exemplos.

Começo com Lição de história da arte, número 6 (2000), de Luis Camnitizer. No espaço da galeria, projetores de slide são colocados irregularmente, apoiados sobre livros de arte, latas de tinta, pilhas de madeira, caixas e engradados. Os slides projetam nas paredes molduras sem imagem: uma possível alusão ao branco sobre o branco de Malevich, sem dúvida; mas também à pintura de Armando Reverón. Porém, aqui, sobretudo, as paredes nuas articulam uma crítica incisiva à escrita da história da arte, que, obedecendo docilmente as oscilações das hegemonias econômicas e políticas, negligencia o que a elas não se acomode.

Paul Ramírez Jones desenvolve uma reflexão instigante sobre a ideia de meridiano em Outro dia (2003) — ideia central na montagem da exposição, aliás. Três monitores de televisão exibem, sem interrupção, uma contagem regressiva evocando os painéis de controle de chegada e de partida de voos nos aeroportos. Pelo avesso, contudo; pois se trata de uma contagem regressiva que anuncia o tempo que falta para o nascer do sol em lugares tão diversos como Oroluk, Tumba Rumba e Cingapura — talvez o local mais facilmente identificável.

Eis o ponto-chave: o sentido aleatório ou simplesmente “natural” do meridiano de Outro dia esclarece os imperativos de política cultural que determinam as inúmeras “páginas em branco” dos catálogos das exposições, exatamente como as paredes nuas de Lição de história da arte, número 6.

Alejandro Cesarco leva essa reflexão um passo adiante com Index (2000). Em sua obra, 12 quadros emoldurados apresentam, em ordem alfabética, índices onomástico e analítico de um livro imaginário, porém os conceitos e nomes dominantes correspondem ao Norte global — expressão empregada pelo curador da mostra, como veremos adiante. Nesse caso, pouco importa que o livro não tenha sido escrito: os índices predeterminam sua semântica e condicionam sua sintaxe.

Recorde-se, nesse contexto, a célebre polêmica sobre o “meridiano cultural” da América Latina. Em 1927, o poeta vanguardista espanhol Guillermo de Torre, em atitude muito pouco iconoclasta, propôs que Madri constituía o meridiano cultural da América Hispânica. Quase não é preciso aludir às previsíveis reações estimuladas por esse anacronismo nada deliberado.

Mais interessante é observar que ainda não soubemos inventar um meridiano utópico similar ao de Paul Ramírez Jones.

Por isso, as paredes nuas de Luis Camnitizer ou os índices sintomáticos de Alejadro Cesareo constituem um comentário corrosivo às práticas assimétricas que determinam a paisagem cultural contemporânea.

Panaméricas
Portanto, como entender o descompasso entre a seleção das obras e sua apresentação?

O curador foi o primeiro a enfrentar o desafio.

Volto a citar o folheto de divulgação:

Os centros artísticos do mundo não estão mais limitados ao Norte global. (…) temos a oportunidade de redesenhar os mapas da cultura e de reconhecer que o que acontece em outros lugares é igualmente relevante.

Não podemos mais falar a respeito de uma América Latina: há muitas Américas Latinas. Under the same sun — Latin American art today almeja encorajar o diálogo e as trocas criativas entre os diferentes centros de atividade criativa da região.

As duas explicações: ou: duas faces da mesma moeda.

De um lado, a noção de Norte global é um eufemismo involuntário, pois, na aparência de um singelo oximoro, no qual a posição fixa — Norte — deveria em tese ser matizada pela inclusão de outras áreas — global —, mantém-se o princípio hierárquico na atribuição dos valores e, sobretudo, na determinação dos modelos dominantes de pensamento.

De outro lado, como reduzir a pluralidade latino-americana ao compasso estreito de um mesmo sol? Como traduzir a multiplicidade num conjunto previsível de reações “a histórias coloniais e modernas, governos repressores e desigualdade social”?

Como disse, as obras selecionadas vão muito além desse pálido panorama.

Proponho uma hipótese: o descompasso revela o ritmo próprio das assimetrias do mercado simbólico.

Dito de modo mais claro: na economia das trocas culturais, a radicalização do veio metalinguístico, estruturador da arte contemporânea, corresponde ao Norte global. Portanto, seria praticamente impossível imaginar uma exposição, digamos, de Joseph Beuys, cujo texto de abertura considerasse sua obra uma espécie de resposta ao trauma da segunda grande guerra, à experiência totalitária do nazismo, ao holocausto, sem mencionar a desestabilização do sistema da arte implícito no gesto criativo de Beuys.

Pelo contrário, nada mais “natural” do que julgar artistas latino-americanos, reunidos sob o mesmo sol, a partir de variáveis que excluem precisamente questões artísticas.

No sistema internacional de trocas culturais, regido por tais noções, arte latino-americana deve ser “reconhecível” a partir de dois critérios fundamentais — e ambos constrangem as obras a um valor representacional elementar e decididamente ultrapassado. Em outras palavras, arte latino-americana se legitima, sobretudo, como fonte de informação acerca de um território determinado, vago e vasto, e como testemunho de uma história outra, violenta e incompreensível.

(O mesmo dilema, aliás, vivido pelos escritores latino-americanos.)

O vídeo de Mario García Torres, Carta aberta ao Dr. Atl (2005), é exemplar e vira essa dinâmica pelo avesso.

O vídeo possui 6 minutos e 26 segundos e consiste num ensaio em forma de carta ao pintor e escritor Gerardo Murillo. Com o pseudônimo de Dr. Atl, ele celebrizou em suas telas e textos uma região ao norte de Guadalajara, Barranca de Oblatos. Ora, o local chegou a ser cogitado para a instalação de uma “filial” do Guggenheim, pois, nesse caso, a força da paisagem adicionaria “valor” à “experiência” de visita ao museu. No vídeo, García Torres expõe a contradição dessa lógica, pois se a arte latino-americana somente se justifica pelo registro histórico que fornece ou pela natureza que a emoldura, então, não há meio-termo possível: simplesmente tal arte não encontra em si mesmo sua motivação.

Há, porém, uma alternativa.

Simples, aliás.

Radicalizar o gesto de García Torres, teorizar sua intuição, tornando prática cotidiana sua crítica à contradição que possibilita mas também restringe o alcance de uma exposição como Under the same sun Latin American art today.

Not Always
Imagino que o leitor tenha se perguntado por que citei somente o “folheto de divulgação”.

Pois é: em vão procurei pelo catálogo da exposição.

Ele não foi produzido. Nem mesmo uma simples brochura. Prática, aliás, pouco comum em grandes museus.

Afinal, não estamos todos sob o mesmo sol?

(Not always under the same sun — of course.)

[1] Evando Nascimento, Retrato desnatural. Rio de Janeiro: Record, 2008, p. 146.

João Cezar de Castro Rocha

É professor de Literatura Comparada da UERJ. Autor de Exercícios críticos: Leituras do contemporâneo e Crítica literária: em busca do tempo perdido?, entre outros.

Rascunho