A dificuldade
Na coluna deste mês, tentarei formular uma questão que há muito me inquieta.
Mas ainda não sei exatamente como devo apresentá-la.
Melhor: coloco em cena a questão por meio de duas aproximações recentes ao texto-matriz por excelência da tradição literária ocidental: Hamlet.
1 + 1 = 30
Na primeira cena do quinto ato, Hamlet encontra-se no cemitério. Aí nasce um dos diálogos mais mencionados do teatro shakespeariano.
Passemos, antes de qualquer comentário, à impecável tradução de Lawrence Flores Pereira:
Hamlet […] Desde quando você é coveiro?
Primeiro coveiro De todos os dias do ano, foi desde o dia em que o velho Hamlet derrotou Fortimbrás.
Hamlet Isso há quanto tempo?
Primeiro coveiro E o senhor não sabe? Qualquer palhaço sabe. Foi o mesmíssimo dia em que nasceu o jovem Hamlet — aquele que ficou louco e foi mandado para a Inglaterra.
Hamlet Ah, é. E por que foi mandado para a Inglaterra?
Primeiro coveiro Ora, porque ficou maluco. Lá ele vai recuperar o juízo. E, se não recuperar, também não tem importância.
Hamlet Por quê?
Primeiro coveiro É que lá nem vão notar. Lá são todos loucos.
Hamlet Como foi que enlouqueceu?
Primeiro coveiro Dizem que de um modo estranho…
Hamlet Estranho como?
Primeiro coveiro Até perdendo o juízo.
Hamlet Mas em que solo se nutriu essa loucura?
Primeiro coveiro Ora, no da Dinamarca. Eu sou coveiro já há trinta anos, de rapaz a homem feito.[1]
Nesse duelo de palavras, em jogo se encontra a idade do Príncipe da Dinamarca. Mais do que um simples peão no tabuleiro das relações políticas, o ponto se reveste de importância capital para uma leitura da peça que não aprisione o protagonista a uma rala infantilização.
Pois é: a matemática não parece exatamente difícil, mesmo para literatos. A interpretação, de igual modo, não parece exigir um talento sobrenatural — desses que realizam a psicanálise de personagens ou sabem com precisão quando se deve levar a sério esta ou aquela fala, numa espécie de hermenêutica mediúnica ainda muito em voga em certos leitores criativos.
A pergunta de Hamlet é tão direta que deveria levar o espectador a apurar bem o ouvido; com certeza, esse diálogo promete: Desde quando você é coveiro? Assim mesmo: straight to the point, e a sequência é tão cristalina que se pode chegar à resposta simplesmente combinando três falas do coveiro:
[…] foi desde o dia em que o velho Hamlet derrotou Fortimbrás.
[…]Foi o mesmíssimo dia em que nasceu o jovem Hamlet.
[…] Eu sou coveiro há trinta anos, de rapaz a homem feito.
Vamos lá: 1 + 1+ 1 = 30.
Hamlet é um homem feito, à espera de seu turno para governar — ser rei.
O excepcional filme de Grigori Kozintsev, lançado em 1964, capturou essa dimensão com maestria. No princípio havia badaladas de sino, em tom de lamento. Bandeiras negras são hasteadas, dominando a paisagem, que se transforma num cenário de luto, intensificado pela trilha sonora de Dmitri Shostakovich.
De imediato, numa tomada de aproximadamente 30 segundos, Kozintsev oferece um suplemento ao texto que dá as mãos à fala do coveiro. O diretor imagina uma cena que não se encontra na peça, porém se trata de elemento crucial para caracterizar a frustração desse homem de 30 anos que acaba de perder, para o tio, o direito à sucessão ao trono do pai.
Eis a tomada: Hamlet cavalga, impetuoso, nada jovial, vindo de Wittenberg, e, chegando ao Castelo de Elsinore, apressa-se a encontrar sua mãe.
O texto shakespeariano, então, começa a ser encenado.
A tradução de Lawrence Flores Pereira encontra-se no mesmo nível da adaptação de Kozintsev. Ademais da felicidade de achados particulares e da dicção brilhantemente inventada para a peça como um todo, o tradutor e poeta colaborou significativamente com a erudição shakespeariana por meio de um ensaio crítico e de uma miríade de ricas notas à tradução.
Colaboração significativa para os estudos shakespearianos em qualquer latitude — vale sempre a pena esclarecer.
A dificuldade: formulação
Esse esclarecimento conduz à formulação da dificuldade com a qual principiei.
Você me desculpará se somente for capaz de imaginar uma fórmula brutal.
(Pelo menos por enquanto.)
No fundo, qual a contribuição que um estudioso brasileiro pode oferecer à fortuna crítica shakespeariana?
E não sejamos ingênuos, tampouco condescendentes. Nessa questão, não há jeitinho brasileiro, ginga carioca, muito menos “criatividade” — palavra simpática, mas que geralmente disfarça a falta de rigor e de aplicação.
A dificuldade é ainda maior em virtude das assimetrias do universo artístico e do mundo acadêmico.
Ora, celebramos entusiasmados, num orgulho que pelo avesso é uma submissão anacrônica, todo e qualquer estrangeiro, especialmente se for europeu ou norte-americano, que afirme platitudes e reitere lugares-comuns acerca de autores brasileiros. Batemos palmas e jogamos o tapete vermelho da recepção calorosa e agradecida.
Como é possível que esse ritual ainda se mantenha atual? Nunca nos envergonharemos de nossa carência?
No entanto, pare um pouco e imagine a situação oposta. Isto é, uma professora da UERJ propõe uma nova leitura de Hamlet. Um pesquisador da UFPE articula um quadro teórico inédito com base numa leitura própria do conjunto do teatro shakespeariano. Muito provavelmente, suas ideias serão recebidas com o mesmo sentimento de Rodrigo ao definir o mouro na primeira cena do ato inicial de Othello: “An extravagant and wheeling stranger of here and everywhere”[2]
Na voz igualmente memorável de Lawrence Flores Pereira, “um forasteiro errático e extravagante”.[3] De novo, o poeta e tradutor avança uma colaboração de nível internacional, tanto no esmero da tradução quanto na exemplaridade do aparato crítico.
Porém…
Pois bem.
Em 2015, Rodrigo Lacerda publicou Hamlet ou Amleto?, cujo subtítulo dá o tom geral do texto: Shakespeare para jovens curiosos e adultos preguiçosos.
O lugar-comum da adjetivação empobrecedora é disfarçado pela dicção bem-humorada, “acessível”, por assim dizer. Finalmente um livro para ser lido como se estivéssemos vendo um programa no YouTube.
O narrador se dirige a uma “vítima” que descobre o inesperado: ela deverá subir ao palco para assumir o papel de protagonista de Hamlet.
Nada menos!
Assim: “Agora você é um ator de teatro — isso mesmo — e pela primeira vez ganhou o papel principal”.[4]
A situação é tão inverossímil, quase absurda, que o narrador insiste (talvez para se convencer): isso mesmo.
Licença poética? Claro!
Vamos em frente.
Um pouco adiante, na dicção tatibitate de quem fala com crianças por meio de originais onomatopeias, o narrador afirma com uma confiança comovedora: “Aos vinte e poucos anos, você […]” (p. 14).
O mantra se repete, às vezes com variações ousadas: “um pós-adolescente revoltadinho” (p. 25). Ainda: “Fez de pirraça mesmo” (p. 30), etc. etc. A originalidade de Rodrigo Lacerda não é pequena.
Contudo, ele precisa enfrentar a primeira cena do quinto ato.
O que fazer?
Nada!
Nada que uma leitura alegre não resolva.
Você avaliará (talvez eu esteja bastante equivocado e não seria a primeira vez):
Se o sujeito estreou na profissão de coveiro no dia em que você nasceu, e se ele é coveiro há trinta anos, pode-se concluir que você tem exatamente essa idade. Certo? Errado. Para mim, erradíssimo. (p. 245)
Obrigado pelo esclarecimento! No fundo, de que valem a matemática e o silogismo diante da filologia tropical? E o que dizer do Freud do posto nove? Para driblar a tragédia, bastaria ter oferecido uma dose generosa de caipirinha ao pós-adolescente revoltadinho. O texto segue (acredite!):
Tudo até agora, absolutamente todas as informações que temos sobre você, todas as demonstrações do seu temperamento, encaixam-se melhor num jovem entre dezenove e vinte e quatro anos. (p. 245, grifo meu)
E como valentia pouca é bobagem, o autor regala a erudição shakespeariana com outro post de Facebook: “O Coveiro 1 nem é um personagem tão confiável assim” (p. 245).
Coda
As traduções de Lawrence Flores Pereira oferecem um roteiro seguro, esclarecendo a contribuição, notável, que se pode dar aos estudos shakespearianos, para além de latitudes e assimetrias.
O ensaio de Rodrigo Lacerda coloca na avenida uma euforia carnavalesca responsável por páginas que chegam a ser constrangedoras pela ingenuidade da leitura ou pela desinformação surpreendente no tocante à milionária bibliografia disponível sobre Hamlet.
Infelizmente, um livro que nem é tão confiável assim.
NOTAS
[1] William Shakespeare. Hamlet. Tradução de Lawrence Flores Pereira. São Paulo: Penguin / Companhia das Letras, 2016, p. 175-76.
[2] William Shakespeare, Othello. 1.1. Org. Norman Sanders. Cambridge: Cambridge University Press, 2003, p. 71.
[3]William Shakespeare. Otelo. Tradução de Lawrence Flores Pereira. São Paulo: Penguin / Companhia das Letras, 2017, p. 139.
[4] Rodrigo Lacerda. Hamlet ou Amleto? Shakespeare para jovens curiosos e adultos preguiçosos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2015, p. 9 (grifo meu). Nas próximas citações, mencionarei apenas o número de página.