O dilema
Em debate realizado na Bienal do Livro do Rio 2013, junto com Veronica Stigger e Ricardo Lísias, o escritor e crítico Evando Nascimento propôs uma reflexão incontornável acerca do dilema relativo à cena literária contemporânea: cada vez mais, o escritor assume uma presença pública indiscriminada e inédita na vida cultural brasileira. No entanto, a leitura efetiva de sua obra permanece num segundo plano desconcertante. Um sintoma perverso: no local onde o debate ocorreu, devido às peculiaridades da organização, nenhum livro dos três autores estava exposto, ou seja, exemplar algum se encontrava disponível para venda!
Eis um involuntário retrato em branco e preto do dilema estrutural que ameaça tornar inócua a bem-vinda voga dos festivais literários. Afinal, não há atalho possível: o ato que define a vitalidade de um sistema literário não é a produção em série de textos, porém a leitura refletida da tradição e dos contemporâneos.
Compreenda-se, assim, qual é o sentido da novidade acima referida, pois, sem dúvida, num passado nem tão distante, escritores ocuparam um espaço relevante no imaginário nacional.
Dono de uma legião de admiradores, Jorge Amado sempre fez jus ao nome. Soube por Josélia Aguiar que os lançamentos do autor de Suor aqueciam o sistema literário como um todo: editores, livreiros, jornalistas culturais e leitores aguardavam o novo livro com grandes expectativas e seu aparecimento fornecia combustível mesmo para editoras rivais e, sobretudo, para o circuito das livrarias, cuja frequência aumentava consideravelmente nas datas próximas ao lançamento.
Erico Verissimo não ficava atrás e poderíamos recordar inúmeros outros nomes capazes de galvanizar a vida literária — não desejo, contudo, esboçar uma lista de autores, mas ponderar um dilema estrutural.
Menciono apenas dois exemplos de romances definitivos, publicados em 1984: A república dos sonhos, de Nélida Piñón, e Viva o povo brasileiro, de João Ubaldo Ribeiro. Ambos os romances desenvolvem uma linguagem própria para tratar do conjunto da experiência histórica nos tristes trópicos, oferecendo uma reflexão de fôlego sobre os impasses e as promessas da formação da cultura nacional. No instante de seu lançamento, os dois livros foram saudados como momentos decisivos na reflexão sobre a sociedade brasileira. A recepção da crítica e do público reiterou o reconhecimento, cuja consequência imediata foi a galvanização da vida literária em torno dos dois títulos.
Então, qual é exatamente a novidade da circunstância contemporânea?
De um lado, a presença inédita no espaço público de autores jovens, que ainda não escreveram suas grandes obras, mas que já circulam em meios variados, incluindo aí a tradução de seus livros, com uma desenvoltura maior do que a dos autores consagrados nos anos de 1980, cuja visibilidade costumava ser um árduo processo, que geralmente consumia anos de dedicação à escrita e à leitura, além da adesão metódica aos rituais da vida literária.
De outro lado, a presença indiscriminada dos mesmos jovens autores em circuitos os mais diversos: claro, em primeiro lugar, os festivais e encontros literários, mas também oficinas de escrita criativa; colunas ou eventuais colaborações para jornais de ampla circulação; participação em programas de televisão e de rádio; assiduidade exemplar em blogs, facebook e twitter; escrita de roteiro para cinema e televisão; circuito de conferências e curadorias para instituições como Sesc, Senac, CCBB.
(Etc. Etc. Etc. A diversidade de opções é justamente o ponto a destacar-se no nível atual de profissionalização da escrita.)
Por fim, um elemento que vale o quanto paga: a proliferação de prêmios vultosos, muitos deles dirigidos especialmente para escritores iniciantes.
O resultado mais notável da conjunção desses três fatores é a possibilidade que escritores jovens têm de viver exclusivamente de literatura.
Devagar com o andor: eles não vivem de direitos autorais, porém das inúmeras atividades propiciadas pela projeção do escritor no espaço público.
Surge a palavra-chave: esse é um espaço propriamente literário que assoma a esfera pública brasileira com uma força antes desconhecida. O fenômeno, portanto, pouco se relaciona com a acepção usual de “vida literária”. Aliás, tal forma de convívio, definidor sobretudo da cena oitocentista, embora presente ainda hoje em certas áreas, estimulou um método de estudo, desenvolvido por André Billy, e, entre nós, exercido com brilho por Brito Broca.
Em tese, a cena contemporânea permite a profissionalização sempre almejada pelos escritores.
No entanto…
Sistema literário ou curto-circuito?
O samba de uma nota só.
Ou: o eterno retorno do dilema estrutural que ameaça a vitalidade da literatura hoje em dia.
Ao fim a e ao cabo, viver de literatura, mas não de direitos autorais é tão-só outro modo de repetir o já dito: o espetáculo dos festivais literários torna-se cada vez mais dominante; embora ele seja independente da leitura efetiva das obras dos autores convidados para a festa.
(Mais ou menos como ser o convidado de honra e, ainda assim, ser barrado no baile — não na entrada, porém na saída…)
Ora, ninguém proporia acabar com os encontros que se multiplicam em todo o país — felizmente, ressalve-se. Contudo, não é possível fechar os olhos para o incômodo paradoxo, pois a experiência literária não pode ter como fundamento livros fechados em prateleiras empoeiradas.
O surgimento dos produtores de texto, como discuti nas duas colunas anteriores, é o sintoma mais saliente desse estado de coisas.
Recupero uma noção de Antonio Candido com um objetivo duplo: entender a radicalidade do dilema contemporâneo e, ao mesmo tempo, propor ideias iniciais sobre formas possíveis de superá-lo; no mínimo, torná-lo produtivo.
Em Formação da literatura brasileira (Momentos decisivos), Candido elaborou o conceito de sistema literário. A distinção entre “manifestações literárias” e “literatura propriamente dita” é a grande novidade teórica e metodológica da Formação. Enquanto aquelas somente dependem do “talento individual”, esta tem por base o estabelecimento de uma “tradição própria”. Isto é, tal distinção pressupõe o funcionamento do sistema literário. Na definição de Candido: “entendo aqui por sistema a articulação dos elementos que constituem a atividade literária regular: autores (…) públicos (…) tradição”.[1]
A história da literatura imaginada por Candido é a narrativa do processo que conduz autores brasileiros à leitura e à citação de autores brasileiros — para além da necessária e inevitável galeria de nomes da literatura dita universal; afinal de contas, o sal da literatura é o diálogo sem fronteiras e entre todas as épocas. Nessa perspectiva, a menção a autores brasileiros cria um domínio próprio de autorreferência. Os “momentos decisivos”, referidos no subtítulo, são momentos de leitura deliberada da própria tradição, plasmada no exato momento em que ocorre o ato de leitura.
Recorde-se o significativo exemplo empregado por Quincas Borba para explicar ao atônito Rubião o sentido onívoro do “Humanitismo”: “(…) Humanitas precisa comer. Se em vez de um rato ou de um cão, fosse um poeta, Byron ou Gonçalves Dias, diferia o caso no sentido de dar matéria a muitos necrológios, mas o fundo subsistia”.[2] Nesse caso, além da intuição antropofágica, constante na visão do mundo machadiana, o fundo é a equivalência entre o poeta inglês e o brasileiro: o sistema literário se concretiza no instante em que ambos podem ser citados paralelamente, pois, a partir de então, um autor (brasileiro) deve tornar-se leitor tanto de escritores estrangeiros, quanto dos próprios pares tropicais. Aliás, tarefa que ninguém exerceu com a maestria de Machado de Assis: é como se os momentos decisivos da formação conhecessem um nível maior de autoconsciência na prosa machadiana.
Desse modo, Candido transforma a história literária no mapeamento da criação de comunidades de leitores. Trata-se de intuição notável; a sua maneira, Candido intuía princípios posteriormente sistematizados pela Estética da Recepção, tal como proposta por Hans Robert Jauss, nos anos de 1960. O crítico brasileiro traduziu a história literária numa inovadora análise combinatória, com base na consideração das inúmeras possibilidades de relacionamento entre os termos “autor”, “público” e “obra” — e nada impede que novos termos se imponham, tornando a equação ainda mais complexa.
No parágrafo de encerramento do livro, por isso mesmo, o tema retorna na imagem do “processo por meio do qual os brasileiros tomaram consciência da sua existência espiritual e social através da literatura” (p. 681). Nesse caso, o sistema literário supõe o exame da dinâmica criada entre os vértices do triângulo composto por autor, obra e público — os elementos propriamente sistêmicos da história literária.
A relação dos três elementos definiria o caráter social do literário e, na ausência desse circuito, costuma-se, ainda nas palavras de Candido, “criar um autopúblico num país sem público” — esse seria o caso das academias árcades no século 18.
O paradoxo é que, se a síndrome do “autopúblico” foi superada, contudo, o público leitor não foi consideravelmente aumentado. Não há uma relação proporcional entre o público, ouvinte, que frequenta com entusiasmo as feiras e encontros, e o público, leitor, que idealmente seria estimulado pelo contato com os autores.
Ler ou não ler, eis questão.
Como enfrentá-la? Como converter a potência do contemporâneo em algo mais duradouro do que os encontros que se multiplicam em todo o país?
(Estaremos condenados à carnavalização de todas as esferas da cultura?)
Alternativas?
Reitere-se: nos últimos 15 anos, superamos definitivamente o impasse estrutural do autopúblico. Porém, ainda não dispomos de um sistema caracterizado pela associação dinâmica entre produtores e receptores. Como explicar essa situação propriamente anômica? Tudo se passa como se Émile Durkheim tivesse antecipado tal circunstância ao cunhar seu famoso conceito.
No entanto, não se trata de um caso clássico de anomia, mas da estrutura tipicamente perversa da formação social brasileira.
Explico-me.
Em lugar de investir seriamente na formação de novos leitores ou, em sentido mais amplo, na criação do hábito regular da leitura em todas as gerações, nossos governantes preferem comprar livros, adquirir tabletes, construir bibliotecas.
(Entre nós, as casas se edificam pelo teto…)
Daí, o desejo de festejar, pois é muito fácil celebrar o lançamento de pedras inaugurais, difícil é o trabalho diuturno de preparação de leitores.
O descompasso entre o caráter inédito da presença pública do escritor e o surpreendente desinteresse pela leitura de sua obra é ainda mais grave porque há décadas já contamos com uma alternativa notável e que deveria ser difundida para todo o país.
Refiro-me, claro, ao modelo da Jornada Nacional de Literatura, criado por Tânia Rosing, em Passo Fundo (RS), cujo esforço merece um reconhecimento nacional, pois antecipou em décadas a invenção de uma solução criativa para o dilema estrutural que hoje ameaça estrangular o desenvolvimento do sistema literário.
Inspirado em seu relevante trabalho, concluo com uma sugestão.
Segundo estatísticas recentes, a cada dois ou três dias ocorre um festival literário no Brasil. Trata-se de fenômeno inédito e que exige uma reflexão sem nenhum tipo de elitismo. A literatura, assim, ocupa um espaço público de grande importância. Contudo, como disse, o ato posterior de leitura não tem conhecido um crescimento similar.
Em lugar de lamentar o fato, podemos fabular caminhos alternativos.
Por exemplo: imaginemos que cada evento literário — de uma Flip ao mais modesto encontro — estabeleça como regra uma ideia razoavelmente simples e de execução nada complexa.
Eis: cada encontro homenagearia dois escritores brasileiros. Daí, uma ou duas edições de um de seus títulos seriam distribuídas para alunos das escolas públicas e particulares do entorno do festival. Pelo menos um semestre antes da realização do encontro, sessões orientadas de leitura seriam conduzidas por professores e monitores, devidamente preparados. Uns poucos meses antes do festival, os autores visitariam a pequena cidade ou o grande centro, a fim de dialogar com seus leitores “locais”. Paralelamente um concurso de redação seria patrocinado pela organização do festival. Em sua abertura, os alunos seriam premiados; desse modo, cada encontro literário no Brasil teria como protagonista o leitor em formação, desatando o nó górdio do momento presente.
(A formação permanente de leitores, em todas as idades e classes sociais, é a espada de Alexandre. Na verdade, o ovo de Colombo, pois é a resposta mais simples e eficaz.)
A primeira edição da Flip ocorreu em 2003. Uma década depois, verificou-se o milagre da multiplicação dos festivais.
Por que não imaginar que o próximo passo deva ser a criação e multiplicação não mais de ouvintes, porém de leitores?
Leitores críticos — não preciso acrescentar.
Essa é a tarefa da próxima década.
Então, os produtores de texto tornar-se-iam propriamente escritores, pois, em primeiro lugar, seriam leitores.
Notas
[1] Antonio Candido. Iniciação à literatura brasileira. 4º edição, revista pelo autor. Rio de Janeiro: Editora Ouro sobre Azul, 2004, p. 16.
[2] Machado de Assis. Quincas Borba. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1975, p. 113.