Os produtores de texto e a escrita expressa (1)

Um interessante fenômeno contemporâneo merece análise: a emergência de talentosos produtores de texto no cenário da literatura brasileira
01/03/2014

Um interessante fenômeno contemporâneo merece análise: a emergência de talentosos produtores de texto no cenário da literatura brasileira. Na última década, observa-se o surgimento de um novo tipo de escrita no circuito das letras no Brasil. Antes de alcançar os jornais, ocupando o espaço de colunas e artigos de opinião, ele foi exercitado na internet, sobretudo através de blogs, e nas mídias sociais, com destaque para o facebook e, mais recentemente, o twitter. A atual voga da “comédia em pé” muito se beneficiou dessa circunstância;[1] portanto, não é casual que alguns de seus representantes mais talentosos mantenham colunas em jornais diários.

Contudo, a Silviano o que é de Santiago: o autor de Em liberdade foi o primeiro a identificar a tendência. Penso na bela entrevista, conduzida por Giovanna Bartucci, na qual, além de uma bem-vinda ampliação do conceito de literatura, ele sugeriu a categoria dos “produtores de texto”.[2] Pretendo ampliar o conceito, buscando apontar as características de sua escrita.

(Numa palavra, trata-se de uma “escrita expressa”. Porém, cuidado: não confundir com a “escrita automática” surrealista.)

Como se percebe, a noção de produtor de texto supõe uma voz ainda não explicitada: escritor.[3] Porém, é fundamental ressalvar que, na perspectiva deste artigo, os conceitos de escritor e produtor de texto não devem ser vistos como essências e muito menos como categorias sem relação entre si. Não se trata de uma distinção binária, com base em juízos de valor anacrônicos. Afinal, idênticos procedimentos definem seu exercício: a escrita e a leitura. A distância entre escritor e produtor de texto não é de natureza, mas de grau, dependendo do elemento dominante em sua prática: escrita, no modelo do produtor de texto; leitura, no caso do escritor.

O produtor de texto é o resultado imprevisto e não necessário da apropriação cotidiana de determinadas inovações tecnológicas, desenvolvidas especialmente na área de comunicação. Fenômeno similar ocorreu com a popularização do telefone celular, pois sua difusão planetária permitiu a criação de redes de informação e de mobilização cujos efeitos são bem conhecidos na arena política. De igual sorte, a massificação de câmaras digitais, tornadas acessíveis e com recursos técnicos cada vez mais sofisticados, permitiu a emergência de formas inovadoras de narrativa, hoje incorporadas pela indústria cinematográfica.

Na mesma linha de raciocínio, tecnologias como a internet, o facebook e o twitter exigem uma atividade intensa e diária de leitura e de escrita.

(Por que não recordar a intuição certeira de Marx? Em condições especiais, a acumulação puramente quantitativa no universo das relações de produção pode gerar mudanças de grande impacto qualitativo.)

Eis a encruzilhada que define a cena contemporânea.

De um lado, (muita) leitura, (alguma) escrita e (obsessiva) reescrita — a respiração do escritor. De outro, (muita) escrita, (alguma) leitura e (ainda mais) escrita — o ritmo do produtor de texto.

Entenda-se (e não desejo driblar a aparente redundância): para o escritor, a escrita é uma atividade segunda, a leitura é o verdadeiro eixo de seu ofício; aí incluída a revisão crítica do próprio texto, vale dizer, a reescrita é o ato que define o escritor. Pelo contrário, o produtor de textos é uma autêntica usina de letras, porém ele se dedica pouco à leitura. E quando o faz, costuma ler com olhos ligeiros; afinal, por que perder tempo, se a escrita do próximo texto é a tarefa mais relevante?

No fundo, todo escritor subscreve o modelo de Marcel Proust, no qual a leitura é uma finalidade em si mesma. Em busca do tempo perdido, Proust alinhava uma sucessão de análises de corte fenomenológico sobre a arte, em geral, e o ato de leitura, em particular. Nesse contexto, a leitura se destaca como experiência existencial decisiva e sua forma mais radical é propiciada pelo corpo a corpo com a literatura.

Recorde-se a reflexão do narrador proustiano acerca do texto que o consome:

…eis que então ele [o livro] desencadeia em nós, durante uma hora, todas as venturas e todas as desgraças possíveis, algumas das quais levaríamos anos para conhecer na vida, e outras, as mais intensas dentre elas, jamais nos seriam reveladas, pois a lentidão com que se processam nos impede de as perceber (assim muda nosso coração, na vida, e esta é a mais amarga das dores, mas é uma dor que só conhecemos pela leitura, em imaginação).[4]

Ora, não é possível escrever sem pausas obrigatórias — idealmente longas — para a leitura dos clássicos e o conhecimento dos pares; para a revisão do próprio projeto literário e, por fim, a reescrita obsessiva de futuros livros. Contudo, é perfeitamente possível produzir textos sem interrupção alguma; afinal, como o produtor de texto não se obriga a ler com cuidado a tradição e os autores coetâneos, tampouco se sente compelido a reescrever o próprio texto. Por isso, ele costuma brilhar nos exercícios de fôlego curto: num primeiro momento, posts no facebook, textos em blogs, assiduidade exemplar no twitter; hoje em dia, colunas de opinião e crônicas em jornais diários.

Nesse sentido, as crônicas de Fábio Porchat e de Gregório Duvivier são exemplares: breves, inteligentes; à espreita da frase de efeito e a serviço de uma perspectiva divertida sobre os fatos do dia-a-dia. O texto, no entanto, dificilmente resiste à segunda leitura. E isso não em virtude de um ingênuo anacronismo em defesa de uma prosa “hermética” ou simplesmente “bela”, o que seria constrangedoramente caricato, mas por uma observação trivial: seus textos revelam uma escrita muito pouco familiarizada com o hábito da leitura. A análise de seus artigos evidencia um repertório literário e lingüístico muito limitado. Daí, os procedimentos empregados repetem-se à exaustão e não se diferenciam dos recursos previamente testados nas apresentações orais dos dois talentosos e jovens artistas.

Esse ponto é decisivo: a distinção mais importante entre escritores e produtores de texto não diz respeito ao talento dos primeiros em oposição à hiperatividade dos segundos. A cena cultural brasileira conta com produtores de texto de real inteligência e inegável vocação. Como vimos, a diferença-chave reside na direção do esforço. O escritor sobretudo lê intensamente; o produtor de texto não dispõe desse tempo porque ele precisa entregar imediatamente o próximo texto de ontem.

É instrutivo, assim, reparar na similaridade da estrutura da frase dos produtores de texto, como se fosse uma assinatura digital, tanto mais reveladora quanto mais anônima.

Leia-se a abertura de crônica recente de Fábio Porchat:

Você já foi ao Acre? Pois deveria. Já fui duas vezes pra lá. A trabalho e a passeio. O show em Rio Branco foi ótimo. Lotado e com um público bastante receptivo. Mas quero falar da primeira vez que eu fui pra lá. Passei meu ano novo de 2007 pra 2008 sozinho em uma tribo indígena, a tribo dos Ashaninkas. Uma semana no meio da selva Amazônica. Foi incrível.[5]

A busca do contato direto com o leitor, transformando-o num ouvinte, recorre à repetição sistemática e facilitadora — Já fui duas vezes pra lá; (…) da primeira vez que eu fui pra lá — e no emprego de estrutura telegráfica, com frases mínimas, embora nada minimalistas, que parecem mimetizar o fôlego curto do próprio texto. Trata-se de uma conversa descontraída, na qual pouca atenção é dispensada à palavra — a ênfase recai na expressão de um conteúdo prosaico.

Compare-se, agora, esse modo de escrita com a frase de Gregório Duvivier:

Muita gente já deve ter morrido a golpes de rabanada do PSOL. Isso porque o pessoal não declarou o panetone. Um panetone é uma arma branca! Ainda mais se for um daqueles bem duros, da Visconti. Quando pega na testa, mata na hora. Mas não vai mais matar ninguém. A fonte secou![6]

O uso reiterado de exclamações, marca de seus artigos, desempenha o mesmo papel de aproximação com o leitor, outra vez confundido com a figura do ouvinte à espera do desfecho da piada. Daí, o desejo de organizar seqüências de frases de efeito, cujo argumento se esgotou logo nas primeiras duas ou três sentenças.

De fato, uma de suas últimas crônicas desenha um auto-retrato involuntário dos produtores de texto:

Escreve o texto agora. Calma. Eu vou escrever o texto agora. O prazo era quinta. E já é sábado. Eu sei. Eu vou escrever agora. Então senta e escreve. Agora? Agora. Sobre o quê? Escreve sobre isso: essa mania de não fazer as coisas que você tem que fazer. Boa, cara. Eu não sei quem é você, mas me dá boas idéias. Só preciso de um café coado. Expresso não serve? Não.[7]

Expresso talvez não sirva mesmo, mas eis o modelo acabado de uma escrita expressa, à qual falta precisamente o tempo necessário para elaborar idéias e reescrever frases.

Na seqüência, tudo se esclarece:

Calma aí. A Ellen DeGeneres tem um texto bom sobre procrastinação.[8] Preciso assistir no YouTube antes de escrever o meu texto, pra eu não copiar involuntariamente. Tá bom Vai lá. O texto dela é muito bom. Agora não dá mais pra eu fazer o meu.

Claro: sem o exercício indispensável da leitura constante, chega o momento inevitável em que o produtor de textos se revela o habilidoso dos contos machadianos.

Machado de Assis compreendeu bem a diferença entre o “artista” e o “homem de talento”. Em O habilidoso, um jovem promissor, João Maria, particularmente dotado para a pintura, não soube converter o dom em obras de arte. O motivo é simples: “Toda arte tem uma técnica; ele aborrecia a técnica, era avesso a aprendizagem, aos rudimentos das coisas”.[9] O artista somente se realiza ao triunfar sobre o artesão talentoso. Ou seja, o artista não se desenvolve em virtude de seu talento, mas ao resistir a facilidade proporcionada pela vocação. Recupera‑se a etimologia: o artista deve antes de tudo conhecer bem as regras do ofício, já que dizem o mesmo as palavras técnica (techné) e arte (ars). No final do conto, o habilidoso limita‑se a reproduzir repetidamente o mesmo quadro, restringindo suas aspirações a um quase nada: “Que este é o último e derradeiro horizonte de suas ambições: um beco e quatro meninos” (II, p. 1.054).

O fecho da crônica de Gregório Duvivier apenas reforça o ponto: “O que é que você tá fazendo de novo no Facebook?”. O horizonte imediato do produtor de texto vem à superfície: as redes sociais e o gênero da stand up comedy. João Maria retorna em pleno século 21, pois, sem disciplina artística e sem apropriação sistemática da tradição, o talentoso produtor de texto condena-se a repetir seus três ou quatro truques de êxito.

Além disso, o tema do colunista que se surpreende sem tema, porém com o prazo de entrega do texto vencido é um dos topos definidores do gênero. De José de Alencar a Paulo Mendes Campos, passando por Machado de Assis, Rachel de Queiroz, Rubem Braga, Fernando Sabino, Clarice Lispector, e uma legião de nomes incontornáveis, incluindo o representante mais fecundo das novas gerações, Antonio Prata, todo cronista brasileiro viveu seu momento “e agora o que escrevo?”.

Como entender que a referência imediata mais significativa para um colunista seja um vídeo do YouTube? Como escrever nessas condições?

E não é tudo: refletindo exatamente acerca da procrastinação, em Brasileiro, homem do amanhã, Paulo Mendes Campos ofereceu uma análise ainda hoje atual das “colunas da brasilidade, as duas constantes (…): 1) a capacidade de dar um jeito; 2) a capacidade de adiar”.[10] A ironia corta o falso ufanismo do título pela metade: não se reafirma a utopia do Brasil como país do futuro. O brasileiro é o homem do amanhã porque a procrastinação é a lei de sua (in)atividade. O movimento contagia a crônica, como se deduz de sua conclusão: “O resto eu adio para a semana que vem”.[11]

(Pois eu também: na próxima coluna levo adiante essa análise, discutindo Fim, o romance da mais talentosa produtora de textos da cena contemporânea, Fernanda Torres.)

Notas

[1] Para uma história do gênero, com suas ressonâncias no Brasil, recomendo a Dissertação de Mestrado de Luciana de Melo D’Aulizio, “Humor sem fronteiras e olhares urbanos: antecedentes, polêmicas e impactos da Stand-up Comedy no Brasil”. Mestrado em Comunicação, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, 2012.
[2] A entrevista encontra-se no livro recém-lançado de Giovanna Bartucci, Onde tudo acontece – Cultura e psicanálise no século XXI. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2013.
[3] Destaque-se, aliás, que muitos escritores brasileiros começaram sua trajetória na internet.
[4] Marcel Proust. Em busca do tempo perdido. Volume I. No caminho de Swann. Tradução de Mário Quintana. São Paulo: Editora Globo, 2011, p. 118-119.
[5] Fábio Porchat. “Acre”. O Estado de S. Paulo. http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,acre,1133622,0.htm
[6] Gregório Duvivier. “Acabou a baderna”. http://www1.folha.uol.com.br/colunas/gregorioduvivier/2014/02/1413111-acabou-a-baderna.shtml
[7] http://www1.folha.uol.com.br/colunas/gregorioduvivier/2014/02/1416608-procrastinacao.shtml.
[8] Não há hierarquia de formas em minha argumentação! A apresentação de Ellen DeGeneres é divertidíssima e muito inteligente: http://www.youtube.com/watch?v=Oct_XVuCuxQ.9. O tópico é cada vez mais popular, articulado uma resistência possível ao mundo da notícia instantânea e das exigências sempre para ontem. Ver, ainda, o vídeo de John Kelly: http://www.youtube.com/watch?v=f1Z9o8Qo0HI, cuja conclusão é similar à de Ellen DeGeneres: procrastinação é um meio de enfrentar a finitude.
[9] Machado de Assis. “O habilidoso”. Obra Completa. Volume II. Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar, 1986, p. 1.051, grifo meu.
[10] Paulo Mendes Campos. “Brasileiro, homem do amanhã”. Brasil brasileiro. Crônicas do país, das cidades e do povo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000, p. 19.
[11] Idem, p. 20.

João Cezar de Castro Rocha

É professor de Literatura Comparada da UERJ. Autor de Exercícios críticos: Leituras do contemporâneo e Crítica literária: em busca do tempo perdido?, entre outros.

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