O que revela um museu?

Visita à Brasiliana, Itaú Cultural
Ilustração: Carolina Vigna
25/03/2016

O Brasil da Brasiliana
Em 1839, “Debaixo da imediata proteção de S. M. I. o Senhor D. Pedro II”, fundou-se o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), cuja principal missão residia em coligir dados, surpreender fontes, esboçar mapas, organizar expedições, enfim, reunir a maior quantidade possível de documentos a fim de favorecer a escrita da história nacional.

De preferência, a ser produzida por um brasileiro — claro está, pois nos encontramos em pleno século 19, às vésperas do Golpe da Maioridade, ocorrido em 1840, e que, numa metáfora um tanto incômoda, levou ao comando do Império um monarca adolescente.

Imberbe, por assim dizer.

Como se o corpo ainda jovem de Pedro II mantivesse uma relação surpreendente com o próprio IHGB: ambos, por assim dizer, cresceram juntos e conheceram o auge nas décadas de 1850 e 1860.

Um passo atrás, contudo.

Em 1839, o IHGB começou a publicar uma Revista, na qual tornava público o trabalho de pesquisa de seus membros, além de estampar a tradução de documentos importantes para o estudo da “história pátria” — como se dizia naquele então.

Por exemplo, em 1845 as páginas da Revista ofereceram ao público o ensaio programático do naturalista alemão Karl Friedrich Philipp von Martius, Como se deve escrever a História do Brasil.

Aprender bem essa lição era tudo o que se desejava. E, quando finalmente um brasileiro, Francisco de Adolfo Varnhagen, escreveu sua História do Brasil, em dois volumes, saídos em 1854 e 1857, recebeu o sintomático título de Visconde do Porto Seguro.

(Em tempo: a Revista do IHGB continua a ser editada regularmente e é a mais longeva publicação periódica brasileira. Será que ainda não sabemos como se deve escrever a História do Brasil?)

Eis aí a origem da noção de Brasiliana, isto é, como indica o sufixo ana, trata-se de toda coleção de registros relativos ao Brasil. Na codificação clássica, o sufixo era geralmente empregado para se referir à antologia de ditos célebres de um personagem notável.

Os dois sentidos atam as pontas na Brasiliana do Itaú Cultural, pois a associação dos 12 mil itens do acervo deveria compor uma imagem, imenso mosaico, cujo painel final daria voz e corpo à ideia de Brasil.

Comecemos a visita — portanto.

Nove módulos e um problema
A Brasiliana impressiona tanto pelo caráter excepcional das peças, individualmente consideradas, como pelo seu conjunto, disposto com argúcia pela curadoria, uma vez que, dada a miríade de objetos disponíveis, era grande o risco de transformar a visita à coleção num inesperado retorno do labirinto cretense em plena Avenida Paulista.

Pelo contrário, o fio de Ariadne é a organização do acervo em nove módulos, cronologicamente ordenados.

Ei-los:

O Brasil desconhecido
O Brasil holandês
O Brasil secreto
O Brasil dos naturalistas
O Brasil da capital
O Brasil das províncias
O Brasil do Império
O Brasil da escravidão
O Brasil dos brasileiros

Como se intui, o primeiro módulo cobre o período imediatamente posterior à chegada dos portugueses. Os dois módulos seguintes concentram-se, respectivamente, nos séculos 17 e 18. A partir do quarto módulo, O Brasil dos naturalistas, a Brasiliana dá a ver o século 19; afinal, e sobretudo a partir do Segundo Reinado (1840-1889), esse foi o primeiro instante, digamos, oficial de afirmação da nacionalidade, justificando assim que o período oitocentista constitua o eixo da exposição. O nono e último módulo, o único dedicado ao século 20, estabelece uma sutil continuidade com os quatro módulos anteriores, pois, como sua denominação evidência, O Brasil dos brasileiros, a busca pelo espaço e tempo Brasil continua a nota dominante.

Samba de uma nota só?

Talvez não.

Recorde-se o título do último módulo: O Brasil dos brasileiros.

Como assim?

Ora, nos módulos anteriores, de quem seria este “O Brasil”? Não posso deixar de anotar a vontade propriamente substantiva no reforço do artigo definido: o Brasil, sem dúvida; imagine-se a incoerência de uma imponente Brasiliana devotada a um Brasil!

Contudo, e, em alguma medida pelo avesso, naquela pergunta, a coleção revela o desafio que ainda hoje não sabemos enfrentar.

Pelo menos não de olhos bem abertos.

(Porém como mantê-los fechados numa visita à Brasiliana?)

É isso: uma curadoria aguda opera o efeito de um texto complexo.

Isto é: como se fosse uma tela de Giorgione, na qual há sempre um excesso ou uma ausência, tornando o quadro um enigma que, porque não se pode “interpretar”, é preciso admirar uma e outra vez.

Nada é mais urgente: reescrever, com olhos nossos (porém não necessariamente novos), a Brasiliana do futuro.

A exposição Brasil
Retornemos ao primeiro módulo, O Brasil desconhecido.

A vitrine dedicada à “representação pictórica do indígena brasileiro” traz um esclarecimento relevante para essa discussão:

O índio imaginado.

Como nunca haviam estado no Brasil, os artistas europeus escolhidos para ilustrar os primeiros relatos de viajantes tiveram de representar os índios a partir de textos existentes e de sua própria imaginação.

O dado é decisivo: a imagem, primeira, do Brasil, constituiu-se, em boa medida, como especulação do imaginário europeu.

Não é tudo.

Aliás, ainda é bem pouco.

Na vitrine A imagem do Brasil canibal reitera-se o ponto-chave, destacando a centralidade do outro na formulação da ideia do país:

De 1500 até 1625, data das primeiras invasões holandesas, a imagem do Brasil esteve invariavelmente ligada ao canibalismo. A prática foi descrita pelos primeiros relatos de viajantes sobre os indígenas, que causaram profunda impressão na imaginação dos europeus da época.

Nos primeiros oito módulos, portanto, do século 16 ao 19, esse é o procedimento dominante. Por isso, a análise, breve, dessas vitrines inaugurais da exposição permite, estrategicamente, compreender o desafio subjacente à Brasiliana.

Um desafio com sabor de paradoxo.

Melhor: puro paradoxo, tornado fratura exposta no percurso dos oito módulos que cobrem quatro séculos.

Pois é sempre o mesmo que se verifica. No caso, é tarefa do olhar do outro delimitar os contornos, desenhar os mapas, produzir os relatos, fantasiar as gentes, catalogar a natureza, nomear fauna e flora, e até mesmo vislumbrar o futuro da escrita do passado, sugerindo como se deve escrever a História do Brasil.

Claro: você não precisa confiar no meu relato! Visite a Brasiliana é só então retome este artigo.

Eu espero.

Viu tudo? Visitou os dois andares?

Eu não tinha razão?

No segundo módulo, O Brasil holandês, destaca-se o Conde, futuro príncipe, Mauricio de Nassau, responsável pela primeira expedição artística e científica realizada no território brasileiro.

(E o Conde sabia das coisas!)

Frans Post e Albert Eckhout chegam ao Brasil como jovens pintores para imortalizar seus nomes graças às telas pintadas no Nordeste. Caspar van Baerle publicou um livro de referência incontornável, Os acontecimentos por oito anos no Brasil, impresso em 1647. De igual modo, Willem Piso e Georg Marcgraf se celebrizaram com sua História natural do Brasil, lançada em 1648.

Entende-se, assim, que o núcleo duro da Brasiliana tenha início com esse módulo, já que data do período da dominação holandesa no Nordeste a produção sistemática de conhecimento sobre o país. Aliás, a aquisição que deu origem à coleção foi precisamente o quadro de Frans Post, Povoado numa planície arborizada. O resultado do esforço foi recompensador, pois, como recorda o texto da exposição, Nassau “voltou para a Europa carregado de imagens e observações científicas sobre o Brasil, preciosas para satisfazer a curiosidade do Velho Continente. Isso lhe trouxe grande prestígio nas cortes europeias por várias décadas”.

E o que dizer do quinto módulo, O Brasil da capital? Eis o título de algumas de suas vitrines: O Rio por Ender e Frühbeck; O Rio pelo prussiano Theremin; O Rio pelo alemão Planitz; O Rio pelo inglês Ouseley; O Rio pelo francês Desmons; O Rio pelo inglês Chamberlain — e veja que evitei o óbvio ao deixar de mencionar as aquarelas de Jean-Baptiste Debret!

A ironia pode ser ainda mais corrosiva. Na vitrine que, finalmente, expunha “Imagens do Rio de Janeiro produzidas na cidade”, uma observação precisa fornece a dimensão exata dessa arte local:

Diante da constante demanda dos visitantes vindos de fora por imagens da capital, vários dos melhores editores e litógrafos estabelecidos na cidade, resolveram produzir localmente álbuns de gravuras com vistas do Rio de Janeiro, geralmente vendidas aos estrangeiros passagens.

Permanente era a determinação do olhar estrangeiro, seja na criação de imagens, seja no alinhamento automático da produção brasileira com o gosto forâneo. Nesse contexto, a Missão Artística Francesa de 1816 não é um fato isolado e muito menos pioneiro, porém a institucionalização do próprio gesto que imaginou índios nunca vistos e os associou para sempre com o canibalismo.

Mesmo no penúltimo módulo, O Brasil da escravidão, o modelo permanece inalterado. O texto da exposição reconhece que “a escravidão é o tema dominante da história do Brasil do século 19 e tem necessário reflexo na arte do período”. Logo, provavelmente terá dominado as artes plásticas brasileiras.

Vejamos, mais uma vez, algumas vitrines: Os escravos de Chamberlain e de Guilhobel; Os escravos de Frond; A escravidão vista por Rugendas; A escravidão vista por Debret.

E bem…

A Brasiliana do Itaú Cultural implica um desafio que segue atual: reconhecer que a ideia de Brasil foi formulada através de um paradoxo, cujas consequências ainda hoje delineiam os impasses da cultura brasileira.

(Impasse, mas também potência, ressalve-se.)

Eis: a Brasiliana obriga a ver que a imagem do país foi construída pelo olhar do outro; um olhar estrangeiro, ao mesmo tempo, espectador e curador de uma exposição multitudinária, artífice de uma inesperada instalação que se encontra em performance há pelo menos cinco séculos…

A “exposição Brasil”.

Brasil como exposição
O que fazer?

Não sei, mas arrisco uma hipótese.

Pela própria forma da constituição da imagem de Brasil, seguiremos particularmente sensíveis à opinião estrangeira.

Em todos os níveis.

A grande imprensa seguirá, submissa, sendo pautada por agências internacionais que distribuem notas de confiança a países como o Brasil como se não tivessem falhado rotundamente na antecipação de tantas crises internacionais.

(Crises sistêmicas, quero dizer.)

Celebraremos, deslumbrados, nomes que porventura tenham alguma repercussão no exterior; por seu turno, nos tristes trópicos, esses mesmos nomes saberão converter em juros e correção monetária a eventual presença em solo alheio.

(Sim: provincianismo às avessas que contagia muitos de nossos melhores artistas e intelectuais — infelizmente.)

O modelo da “exposição Brasil”, portanto, não perdeu e não perderá vigência.

Contudo, talvez haja uma alternativa.

A hipótese que ofereço para concluir este artigo.

Pois bem: radicalizemos o obstáculo revelado pela Brasiliana. Aceitemos sua lógica interna: de fato, somos atravessados pela centralidade do olhar do outro. Como tenho proposto, o Brasil é um dos tipos mais acabados das culturas shakespearianas.[1]

A “exposição Brasil” precisa reinventar-se na imagem de um Próspero atado à oscilação permanente entre Ariel e Calibã. Eis o pulo do gato intuído no soneto de Machado de Assis, No alto, cujo terceto final bem poderia ser lido como um programa crítico:

O poeta chegara ao alto da montanha,
E quando ia a descer a vertente do oeste,
Viu uma cousa estranha,
Uma figura má.

Então, volvendo o olhar ao subtil, ao celeste,
Ao gracioso Ariel, que de baixo o acompanha,
Num tom medroso e agreste
Pergunta o que será.

Como se perde no ar um som festivo e doce,
Ou bem como se fosse
Um pensamento vão,

Ariel se desfez sem lhe dar mais resposta.
Para descer a encosta
O outro lhe deu a mão.

Somente assumindo a radicalidade dessa circunstância, poderemos repensar o país.

Nada é mais urgente: reescrever, com olhos nossos (porém não necessariamente novos), a Brasiliana do futuro.

Caso contrário, o último módulo, O Brasil dos brasileiros, jamais deixará de ser uma utopia, inesperada projeção fantasmagórica hamletiana.

Mas, se possível, sem angústia.

Troquemos de personagem! E, como se fosse possível imaginar um Iago sem ressentimento, como se desfilássemos num bloco de quarta-feira de cinzas, diríamos: I am not what I am.

Nota
[1] Hipótese que propus inicialmente no livro, escrito em espanhol, ¿Culturas Shakespearianas? Teoría Mimética y América Latina (México: Universidad Iberoamericana / ITESO, 2014). Ano passado, uma versão reduzida foi traduzida para o francês por François Weigel: Cultures latino-américaines et poétique de l’émulation. Littérature des faubourgs du monde? (Paris : Editions Petra, 2015). No primeiro semestre deste ano sairá no Brasil a versão definitiva, muito ampliada e totalmente reescrita: Culturas shakespearianas e poéticas da emulação. Desafios da mímesis em contextos não hegemônicos (São Paulo: É Realizações, 2016). Esta última versão foi contratada pela Michigan State University Press, com tradução de Flora Thomson-DeVeaux, e previsão de lançamento no final deste ano.

 

João Cezar de Castro Rocha

É professor de Literatura Comparada da UERJ. Autor de Exercícios críticos: Leituras do contemporâneo e Crítica literária: em busca do tempo perdido?, entre outros.

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