Plataformas em proliferação
Terminei a coluna do mês passado assinalando dois traços decisivos da cena contemporânea.
De um lado, o milagre da multiplicação de plataformas; de outro, a simultaneidade entre a introdução de um novo meio de comunicação e sua difusão imediata — em escala planetária.
Em ambos os casos, tudo se passa como se o meio estivesse, por assim dizer, à frente da mensagem. Ou seja, à multiplicação de plataformas e à difusão de meios de comunicação nem sempre corresponde um conteúdo determinado que dê corpo às formas em constante emergência.
Num passado não tão distante, grandes grupos de comunicação adotaram (e ainda adotam) a estratégia de reciclar o conteúdo de suas produções em plataformas inúmeras.
O jogo é bem conhecido e se desenvolve em arenas as mais diversas.
Vamos lá: comecemos com um exemplo “nobre”.
Uma editora que faça parte de um conglomerado de comunicações promove seu “produto” em lançamentos “tradicionais”, que geram entrevistas para jornal, rádio e televisão — e, claro, nos dias que correm, inserções várias nas redes sociais. Desse modo, o “produto” circula em múltiplas mídias, aumentando a probabilidade de favorecer o êxito de vendas, que, se ocorrer, justificaria nova rodada de aparições do autor.
(A redundância é combustível dessa máquina.)
Esse cálculo de “otimização” de cada título lançado estimulou uma regra de ouro que muitas vezes impede o adensamento literário das gerações mais jovens; afinal, aqui, vale o provérbio: a pressa é mesmo inimiga da escrita e sobretudo da revisão (quase) infinita.
Explico: um bom número de casas editoriais pressiona seus autores para publicar um novo livro a cada dois, no máximo três anos. Essa seria a periodicidade “ideal”: assim, o público não se esquecerá tão facilmente do escritor e, ao mesmo tempo, tampouco sua “imagem” corre o risco de tornar-se cansativa. O jovem autor que siga essa receita sem dúvida assegurará presença constante nos meios, mas provavelmente não encontrará tempo suficiente para dedicar-se à escrita e sobretudo à leitura.
(O cuidado com a imagem é uma questão metalinguística — não se entenda mal o zelo editorial!)
Em outras áreas o processo é tão bem conhecido, e avassalador, que dispensa maiores observações. Digamos apenas que no mundo do entretenimento a reciclagem de notícias nos mais diversos meios e a exploração da imagem de artistas conduziu o modelo à virtual exaustão.
E o que dizer de uma categoria tão risível quanto reveladora: personalidade da mídia? Ou da irrupção incontrolável de subcelebridades da mídia?
Midas de ponta-cabeça, esse sistema autorreferente transforma tudo que toca em matéria mínima para a mídia.
Eis que um fator inédito forçou essa engrenagem perfeitamente ajustada a adaptar-se. Ora, sua operação implicava a defasagem temporal entre os polos da produção e da recepção. Tal hiato favorecia o controle do processo, facilitando seu (possível) direcionamento. Trabalhava-se no intervalo entre o ato e a sua repercussão, a fim de tornar a mediação entre os dois polos o instante privilegiado para formar opinião antes mesmo da fruição do produto.
No entanto, na era da simultaneidade digital, outras estratégias precisam ser desenvolvidas.
O provedor de conteúdo
Nesse cenário acelerado, apresenta-se no palco midiático o provedor de conteúdo, curiosa figura, oriunda da pluralidade de plataformas e alimentada pelos cruzamentos das redes sociais.
O provedor de conteúdo possui uma meta exclusiva: ocupar espaço na mídia. Ele costuma ser um bem-comportado funcionário do contemporâneo, cuja palavra vale exatamente porque não pesa (muito). Dublê profissional, flâneur das ideias, transita entre temas e disciplinas como quem troca de figurino. Jornalista um dia; romancista acidental em outro; por fim, analista de comportamento — ora, todo mundo pode muito bem ter uma novíssima opinião formada sobre tudo.
Nada importa para esse jesuíta pós-moderno, pois os fins sempre justificam os meios: precisamente estar na mídia.
“Bem”, você objetará, “mas o que há de inesperado na figura do comentador político ou cultural”?
Nada — nada de novo sob o sol.
Mais ou menos.
O comentador cultural ou político, o crítico literário, o jornalista de opinião, vale dizer, toda a esfera da cultura outrora responsável por estabelecer mediações entre produtores e receptores entrou em colapso com o advento de uma tecnologia de comunicação que materializou a simultaneidade entre o ato e sua difusão.
A hipótese que proponho é uma tentativa de elaborar o desafio contemporâneo: o provedor de conteúdo responde à urgência de reinserir algum nível de mediação ante o imediatismo da simultaneidade propiciada pelos meios na era da agoridade máxima — o reino da Jetztheit benjaminiana é o aqui e agora.
(O tempo do presente ampliado — nos termos de Hans Ulrich Gumbrecht.)
Vocês se recordam?
Vocês se recordam o que faziam à meia-noite do dia 15 de janeiro de 1991?
Pois creio que eu nunca me esquecerei: estava acordado, tenso, televisão ligada, esperando o princípio da operação “Tempestade no Deserto”, autorizada pelo presidente norte-americano George Bush, uma vez que Saddam Hussein não aceitou os termos do ultimato, recusando-se a retirar as tropas iraquianas do Kuwait.
(Um passo atrás.)
A Cable News Network completava sua primeira década de existência e o conceito de transmissão simultânea de acontecimentos em todo o mundo ainda não se havia transformado no ar que respiramos, mas começava a dominar nossa percepção dos eventos.
(Dois passos adiante.)
Meia-noite, 15 de janeiro de 1991: em todo o mundo, os televisores ligados não acompanhavam a transmissão, ao vivo, de um acontecimento em curso — na hora do calor, por assim dizer.
Não.
Meia-noite, 15 de janeiro de 1991: em todo o mundo, os televisores ligados antecipavam o futuro imediato. Olhos fixos no monitor, subitamente fomos surpreendidos pela imagem de um (perverso) videogame, com seus pontos luminosos, seguidos de explosões pontuais na tela.
Você se recorda? Na época os militares, orgulhosos, acreditavam em “bombas inteligentes” e em “ataques de precisão cirúrgica”.
Claro.
O ponto decisivo, contudo, era de ordem narrativa: como dar conta de um evento que está prestes a ocorrer? Como noticiar um fato em gestação?
Um salto no tempo: onde você estava no dia 11 de setembro de 2001 às 8h46 da manhã?
A precisão, aqui, é a chave do meu raciocínio.
Eu estava em casa e fui acordado pelo telefonema agitado de minha mãe, que me instava a ligar imediatamente a televisão. Foi o que fiz e passei a seguir os comentadores da CNN.
Digamos que o tenha feito às 08h56.
Pois bem: por longos 7 minutos, os “especialistas” especulavam sobre o incompreensível desastre aéreo (assim se pensava), em si mesmo espantoso: um avião comercial, da American Airlines, errar a tal ponto a rota que terminou por chocar-se com a Torre Norte do World Trade Center. Como dizer algo significativo, ali, na exata hora em que a Torre começa a ruir? No entanto, como conciliar o silêncio (prudente) com o desejo (legítimo) de preservar o próprio emprego?
Às 9h03 um avião da United Airlines atingiu a Torre Sul, colocando em suspensão tudo que até então se havia dito. As Torres, incendiadas, atravessadas pelos aviões, desabaram ante a incredulidade de todos.
Enfim, ainda que brevemente, o silêncio se impôs.
(O provedor de conteúdo é um dispositivo contra esse silêncio.)
Coda
No calor da hora, Martin Amis escreveu um dos ensaios mais agudos acerca dos atentados, The second plane. De fato, o segundo avião completou o colapso iniciado no distante janeiro de 1991.
Ainda hoje estamos às voltas com a crise narrativa ocasionada pela simultaneidade entre acontecimentos e sua difusão imediata em escala planetária.
As consequências levam longe e tarefa urgente é ponderar o alcance de dispositivos atuais. O provedor de conteúdo, se vejo bem, é um dos mais destacados.
(Iniciei o jogo: o próximo lance é seu.)