O antigo: aqui e agora (final)

Visita ao Musée Eugène Delacroix
28/08/2016

 

O Oriente de Delacroix
Nas duas colunas anteriores, vimos como a viagem de Eugène Delacroix a Londres, em 1825, foi decisiva em sua formação. O contato de primeira mão com modelos da cultura clássica ajudou a definir sua imaginação da Antiguidade, determinando o escopo de seus diligentes exercícios de formas e volumes.

Três anos depois, uma nova experiência revelou-se igualmente central para a posteridade do pintor.

Refiro-me à viagem para o Marrocos. Delacroix acompanhou o Conde de Momay a fim de registrar as gentes, os costumes e as paisagens marroquinos em desenhos, aquarelas e óleos.

Claro, o Oriente de Delacroix não escapou da voga orientalista, tão bem caracterizada por Edward Said.

Sim.

É certo.

Mas não é tudo.

Felizmente.

O Marrocos implicou um desafio estético de grande alcance.

Como descobrir o contorno preciso para dar a ver as roupas e seus drapeados, e seus vestidos-máscaras, e seus véus, e seus turbantes?

E como distribuir personagens no espaço da tela?

Entenda-se o embaraço: dada a proximidade dos corpos, como definir linhas e volumes?

A tela icônica Les femmes d’Alger dans leur appartement,[1] apresentada em 1834, seis anos após a temporada no estrangeiro, condensou a dificuldade técnica enfrentada por Delacroix, e, ao mesmo tempo, atiçou o ânimo mimético de Pablo Picasso.

Roteiros, roteiros, roteiros
Ah! as viagens e seus efeitos nas paletas dos mais diversos pintores.

Os exemplos são incontáveis; menciono dois ou cinco.

E sem ordem alguma.

Ao sabor da lembrança.

Em abril de 1914, poucos meses antes da eclosão da Primeira Guerra Mundial, August Macke, Louis Moilliet e Paul Klee desembarcaram na Tunísia e o impacto em suas obras foi objeto de uma exposição pioneira — tema de futuro artigo.

Durante a viagem, Klee concluiu nada menos que 35 aquarelas e 13 desenhos, num diálogo-disputa que levou à invenção da moderna aquarela.

Uma década depois, em outro continente, e conduzida pelos olhos ávidos de outro suíço, Tarsila do Amaral concebeu a “cor brasileira”, buscando combinações cromáticas, formas geométricas e motivos míticos que lhe dessem corpo.

Em Arles, Gauguin e Van Gogh envolveram-se num arriscado mimetismo, ampliando suas cores e rivalizando na fixação dos traços de Madame Ginoux.

Nômade desde a primeira infância, passada em Lima, Gauguin transformou o ato de viajar em estilo de vida e gesto propriamente pictórico.

Aliás, gesto e estilo radicalizado na obra de Wilfredo Lam — um artista que me fascina cada vez mais, embora por vezes tenha a sensação de apreender sua obra sempre um pouco menos do que gostaria.

Numa recente e impressionante retrospectiva organizada pelo Centre Georges Pompidou, o curador teve a sensibilidade de expor o mundo de Lam percorrendo seus passos.

Literalmente.

A primeira sala apresentava o estudante da Academia de Belas Artes em Madri. Na sequência, a temporada inicial em Paris e o influxo do surrealismo.

O retorno a Cuba, e, sobretudo, o encontro com Fernando Ortiz e o estudo da tradição religiosa e dos códigos visuais da cultura afro-cubana estimularam o pulo do gato: Lam reinventou-se, criando um vocabulário próprio e forjando uma visão do mundo única. Nesse território linguístico, permaneceu em moto contínuo, deslocando-se como quem encontrou sua residência especial na terra.

E o que dizer de El Greco?

Em sua trajetória onívora, deslocou-se de Creta para a então metrópole Veneza. Chegou a Roma, e, por assim dizer, visitou Madri sem alcançar o êxito antecipado, e, por fim, imortalizou Toledo em suas telas. A mesma cidade, aliás, que, no século 13, abrigou uma extraordinária experiência multicultural: a “Escuela de Traductores de Toledo”. Iniciativa que reuniu sábios cristãos, judeus e árabes traduzindo, retraduzindo e trestraduzindo de uma língua a outra.

(Derridiana avant la lettre, a Escola de Tradutores já sabia: “Plus d’une langue”.)

Em cada novo porto ou porta de cidade, El Greco, sem abrir mão das formas icônicas da arte bizantina, assimilava as novidades que encontrava: o colorido veneziano, o desenho romano, o retrato madrileno. A compressão dos tempos e dos espaços lograda pelo pintor cretense é provavelmente o modelo arquetípico da poética da emulação.

E Picasso — claro.

Percurso impecável: de Málaga a Madri; do talento precoce à disciplina acadêmica.

De Madri a Paris: esforço de consagração; fracasso inicial e retorno à capital da Espanha.

Pois é: “capital” da Espanha.

Mas não por muito tempo — alguma dúvida?

Nova viagem a Paris e, especialmente, às telas de Matisse; nesse curto-circuito mimético que define o pintor de Les demoiselles d’Avignon.

Ou o apropriador da tradição.

De todas as tradições.

No espaço da tela, seu calcanhar parece tocar o da jovem mais à direita da tela. Narguilé à mão, seu olhar disperso e sua pele pálida prometem devaneios e desejos.

Picasso-Delacroix
A exposição — e também esta série de artigos — concluía com uma mostra especial, dedicada às apropriações de Picasso de Les femmes d’Alger dans leur appartement.

Você se recorda da distribuição de corpos no espaço da tela.

(Quadro dos mais analisados, limito-me a apontar uma questão próxima a meu interesse nesta série de artigos.)

Três jovens, ricamente adornadas, são observadas por uma mulher negra, apresentada de costas para o espectador, num ritmo que sugere movimento, em oposição às demais personagens. No espaço da tela, seu calcanhar parece tocar o da jovem mais à direita da tela. Narguilé à mão, seu olhar disperso e sua pele pálida prometem devaneios e desejos. A seu lado, outra jovem observa a amiga com intensidade e suas pernas, talvez apenas os joelhos, se tocam numa casualidade sugestiva. A jovem à esquerda do quadro mantém uma distância prudente, embora encare com firmeza desconcertante o espectador. Seus braços abertos, com os dedos levemente crispados transmitem uma tensão prometedora; ademais uma perna apoiada levemente sobre a outra mesmeriza mesmo o visitante mais apressado do museu.

No fundo, um armário (seria uma passagem?) vermelho, entreaberto, potencializa a sensualidade de toda a cena, cujo efeito em boa parte depende desse roçar de corpos, dessa sugestão de um toque iminente.

O especialista sorri: “claro, trata-se da representação de um harém”.

Como não convém argumentar com eruditos, sigamos.

Eis o que importa: como Picasso se comporta diante da tela de Delacroix?

Ora, ele produz variações do procedimento que definiu seu trato com os mestres.

Isto é, Picasso reinventa o quadro que o afetou em estudos de volumes e de cores distribuídos no espaço pictórico.

Exatamente o gesto que empregou em suas incontáveis releituras de Le déjeuner sur l’herbe, de Manet.

Exatamente — mas com todas as diferenças necessárias.

O exercício de apropriação de Picasso desenvolveu-se por meio de inúmeras variações.[2]

Há nelas um traço comum: a sugestão de toque que domina a tela de Delacroix se metamorfoseia numa fusão de braços e pernas, em alguns casos transformados em autênticos símbolos fálicos. Desse modo, o que permanecia latente na imagem do pintor francês surge manifesto, mesmo explícito nos experimentos do espanhol. E não apenas porque os corpos aparecem desnudos, mas sobretudo porque agora a proximidade física produz um amálgama de corpos através da mescla de volumes e cores.

Há mais.

Em pelo menos um caso,[3] Picasso funde não apenas cores e volumes, porém a própria tradição pictórica, introduzindo elementos de Velázquez em Delacroix. A porta entreaberta de Les femmes passa a sugerir o espelho no fundo do quadro, traço marcante de “Las meninas”; e a jovem no canto esquerdo da tela de Delacroix parece assumir a posição das personagens de Velázquez.

Poética da emulação — sem tirar nem pôr.

E bem, e o resto?

Nem preciso dizer: não resolvi problema algum.

Mas também não pretendia fazê-lo.

NOTAS

[1] Eis uma reprodução da tela: http://www.1001tableaux.net/IMG/arton650.jpg.

[2] Eis alguns exemplos: http://search.it.online.fr/covers/wp-content/Pablo_Picasso,_Les_femmes_dAlger,_version_I,_1954.jpg; http://www.spectacles-selection.com/archives/expositions/fiche_expo_P/picasso_delacroix/Femmes%20_Alger_versionE.jpg.

[3] Ver: http://www.christies.com/media-library/images/features/articles/2015/04/23/picasso/picasso.jpg.

 

João Cezar de Castro Rocha

É professor de Literatura Comparada da UERJ. Autor de Exercícios críticos: Leituras do contemporâneo e Crítica literária: em busca do tempo perdido?, entre outros.

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