Minimanual do guerrilheiro urbano: leituras e prismas (9)

O combustível da guerra cultural é uma série de fantasmas, autênticos espantalhos, que mal disfarçam a precariedade da argumentação dos guerrilheiros do éter das redes sociais
Carlos Marighella, autor de “Minimanual do Guerrilheiro Urbano”
30/04/2019

Basta!
No último mês interrompi a análise textual do Minimanual do guerrilheiro urbano para refletir sobre fenômeno recente, qual seja, a campanha de difamação descontextualizada da memória de Carlos Marighella. No fundo, mais um episódio da nefasta guerra cultural que o ressentimento procura impor nos dias agônicos que correm.

O combustível da guerra cultural é uma série de fantasmas, autênticos espantalhos, que mal disfarçam a precariedade da argumentação dos guerrilheiros do éter das redes sociais. O mais conspícuo entre tantos espectros é o marxismo cultural. Ninguém sabe o que ele é: uma mosca, um mistério, uma moda que passou? Isso a extrema-direita nunca falou.

(E muito menos suspeita da existência do marxismo ocidental… Ler o ensaio notável de José Guilherme Merquior? Não sejamos impertinentes!)

Mas, aí, há malícia… Ao não definir a natureza do “inimigo”, pode-se enquadrar na categoria frouxa todo e qualquer pensamento que não espelhe as duas ou três noções rudimentares que compõem o “universo” de referências do analfabetismo ideológico.

Sim: escrevi “inimigos”. No cenário brasileiro, ocorre o milagre da multiplicação dos não-leitores do Conceito do político, de Carl Schmitt, que, sem conhecerem a obra do pensador alemão, porém movidos pelo ódio, transformam todo adversário eventual em inimigo permanente.

(Sei bem que você não ignora que Carl Schmitt apoiou integralmente o nazismo, mas os analfabetos ideológicos somente leem dois manuais, assistem uma miríade de vídeos de youtubers que leram três manuais, e creem tudo conhecer.)

O perfil deliberadamente difuso desse tipo de classificação dificulta o debate; no limite, inviabiliza o diálogo. Contudo, chegou a hora de enfrentar essa onda intolerante que troca argumentação pelo xingamento, o raciocínio lógico pelo tique da hipérbole, a escuta do outro pelo desejo de eliminá-lo. Não é mais possível manter uma posição olímpica, como se essa violência incontida fosse apenas uma voga temporária.

Dedicarei esta coluna à denúncia da má-fé e da ignorância daqueles que, além de analisar um filme sem tê-lo visto, discorrem sem pejo sobre temas que desconhecem com o rosto simpático de um recém-nascido loquaz.

Passemos, pois, à análise de um vídeo recente que pretende nada menos do que provocar o fracasso na recepção de um filme que nem sequer entrou em cartaz. Hora de confrontar esse obscurantismo, esse ódio por tudo que não se conforme a bolhas digitais ou a minúsculas concepções de mundo. Cidadãos de uma Lilliput mental, esses alpinistas da planície passaram de todos os limites.

Basta!

Maledicência como método
Peço que você se arme de paciência e assista ao vídeo de Bernardo Küster, “Eu te conto quem foi Marighella”.[1] Os seus 26:07 minutos são divididos em dois blocos.

No primeiro, que dura até 13:15, num modelo de rara criatividade hermenêutica, quase um prodígio de clarividência, o youtuber, que se declara católico e inclui em seu canal um comércio de vendas variadas, oferece uma longa análise do filme Marighella, estreia de Wagner Moura na direção.

Como? — você se pergunta. O filme ainda não foi lançado!

Pois é: para o bravo Bernardo isso é apenas um detalhe; aliás, para seu exercício constrangedor de maledicência é mesmo melhor não assistir, não ver, não ler, não se (in)formar.

O primeiro bloco tem seu ritmo marcado por um baixo contínuo visual: o excerto de uma entrevista do diretor. Na verdade, a fixação de uma ou duas imagens, nas quais Wagner Moura interrompe a fala e parece assoar o nariz. Em termos populares: ele parece fungar, num gesto comum para quem sofre de rinite.

Sim — é isso que você pensou e imediatamente meneou a cabeça imaginando que ninguém lançaria mão de um recurso tão vil.

Imagina! O cristão Küster não tem desses pruridos piedosos. Por isso, no minuto 6:10, depois de macaquear insistentemente o gesto, o ousado Bernardo traveste-se de médico e diagnostica o contratempo: a incidência de um peculiar resfriado: “a gripe Maradona” — expressão é dele, não minha; por favor…

Aguente firme: a sugestão do uso de cocaína por parte do diretor do filme pontua todo o primeiro bloco: 13 minutos de sordidez explícita.

No minuto 6:34, o cristão Küster esclarece involuntariamente a que ponto o ódio político leva à desumanização, isto é, à negação vitimária do outro. Com um tom de voz entre zombeteiro e severo, ele informa a seu misericordioso público:

E teve até plaquinha da Marielle. (…) Carlos Marighella está sendo comparado a Marielle. Quer dizer o seguinte: será que eles estão dizendo que a Marielle também era uma terrorista, comunista, a favor da guerrilha. Essa é a sugestão que eles tão (sic) dando. Ou eles estão simplesmente querendo insinuar que ela foi morta porque ela lutava pela democracia? Tá, tá, tá (sic) estranha essa história aí, viu?

O uso do diminutivo — “plaquinha” — tem óbvio sentido pejorativo, apequenando o valor da homenagem à vereadora assassinada. A incorporação do cacoete de fala característico do atual presidente da República — “essa história , viu?” — completa a identificação perversa com certo espectro político que acredita que a eliminação do adversário é o meio próprio de disciplinar a pólis.

No entanto, estranho mesmo é que um autoproclamado católico manifeste tamanha insensibilidade ante a execução de Marielle Franco e de Anderson Gomes. Bernardo Küster é bem o tipo de cristão que se orgulha de atirar a primeira pedra…

Primeira? Um verdadeiro arsenal: há de tudo um pouco na vinha desse produtor de conteúdo.

(Terá lidos os Evangelhos? Conhecerá o célebre episódio?)

Aliança ou Ação?
O fel e a malícia que transparecem em cada palavra, reforçados por penosos gestos histriônicos e por risíveis esgares, dignos do inesquecível Cigano Igor, justificam-se na recomendação presente no minuto 11:52: “Não assista o (sic) filme. Não vá ao cinema”. Eis o propósito do vídeo: convencer o espectador a não assistir ao filme! Eliminá-lo, pois, é o objetivo. Como é possível que o ódio chegue ao ponto de pregar a eliminação de uma obra? O cristão Küster não sabe o que significa oferecer a outra face; sua especialidade é atirar pedras.

No minuto 13:15 principia um “resumo” da história de Carlos Marighella: é desconcertante o nível de confusão mental e de desonestidade intelectual. Os equívocos são tantos que exigiriam uma segunda coluna, mas, muito embora o imoderado Bernardo indique como referência indispensável o livro do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, A verdade sufocada, não desejo torturar meu eventual leitor. Contento-me em assinalar os erros mais grosseiros.

De fato, tropeços caricatos.

No minuto 19:30, o inopinado Bernardo deslumbra o conhecimento histórico com um dado novo:

Ele se une então com o pessoal da Teologia da Libertação e cria a guerrilha da Aliança Libertadora Nacional. Este é o Marighella. O Marighella sem a Teologia da Libertação não é ninguém. 

O apressado Bernardo confunde a Aliança Nacional Libertadora (ANL), frente ampla de esquerda, atuante entre 1934 e 1937, com a Ação Libertadora Nacional (ALN), grupo de guerrilha organizado por Carlos Marighella em 1967. Repetir mais de uma vez Aliança Libertadora Nacional evidencia o despreparo inquietante do youtuber.

Bastaria ter aberto o Minimanual… No último parágrafo da seção O que é o guerrilheiro urbano, Marighella elenca um conjunto indispensável de obras para a luta armada: são somente clássicos da guerra de guerrilhas em vários contextos e em épocas variadas.

Por fim, no minuto 23:15, o desinformado Bernardo coloca na tela parágrafos do Minimanual. Porém, ele usa uma versão equivocada, dessas que circulam na internet com interpolações e inserções que não correspondem ao texto efetivamente escrito por Marighella.

Não se trata de embaraço metodológico, porém do sintoma definidor do analfabetismo ideológico: desinformação acima de tudo, intolerância acima de todos.

[1] O vídeo pode ser visto aqui: https://www.youtube.com/watch?v=v8iH676nibo.

João Cezar de Castro Rocha

É professor de Literatura Comparada da UERJ. Autor de Exercícios críticos: Leituras do contemporâneo e Crítica literária: em busca do tempo perdido?, entre outros.

Rascunho