Minimanual do guerrilheiro urbano: leituras e prismas (8)

O analfabeto ideológico só apreende do texto — ou a ele atribui — o que seja espelho de suas convicções políticas
Carlos Marighella, autor de “Minimanual do Guerrilheiro Urbano”
30/03/2019

Atenção!
(Um passo atrás se impõe nesta longa série — e não pretendo encerrá-la tão cedo. No último mês, radicais de direita e de extrema-direita iniciaram uma campanha difamatória contra a figura histórica de Carlos Marighella. O instrumento favorito dessa difamação é a “leitura” do “Manual” do guerrilheiro urbano. Ora, nem o título do livro acertam. Hora, pois, de reagir.)

Radicais (nada livres) na pista
No próximo mês de abril, Wagner Moura lançará Marighella, filme que marca sua estreia como diretor. A cinebiografia do líder político de esquerda enfatizará os cinco anos finais de sua vida. O período privilegiado, ou seja, de 1964, ano do golpe militar, a 1969, data de sua morte, retrata um dos momentos mais polarizados da história republicana, possivelmente comparável à crise aberta pela abdicação de Pedro I em 1831. A sucessão de rebeliões provinciais, e mesmo independentistas, levou ao Golpe da Maioridade, que, em 1840, conduziu ao trono um Pedro II adolescente. Em ambos os instantes, movimentos armados contestaram a legitimidade do poder constituído e nos dois casos as forças de repressão lograram conter o impulso revolucionário.

No Brasil contemporâneo, a pólis pós-política transformou o conflito, sem mediação possível, em autêntica razão de ser. Junho de 2013 foi o anúncio definitivo de uma rejeição ecumênica, ainda que difusa, do sistema: palavra-valise com ares de caixa de Pandora. O processo de impeachment conduziu o país a uma polarização ainda mais acirrada, cuja radicalidade invadiu literalmente todas as esferas do cotidiano: dos debates públicos às disputas familiares. Nunca a matéria política foi tão determinante do comportamento das pessoas, mas isso ocorreu simultaneamente à negação completa da política institucional. A política é o centro das ações, embora não se possa mais identificar centro algum de legitimação sólida dos poderes executivo, legislativo e judiciário.

O paradoxo desse excesso de atividade ao lado de completa ausência de legitimidade propiciou a emergência tsunâmica das redes sociais como agente político, com um protagonismo inédito e perfeitamente verificável nas eleições presidenciais de 2018. O modus operandi bélico do universo digital, homólogo ao binarismo de seu suporte, não pode senão agravar os extremismos que inviabilizam o diálogo nas atuais circunstâncias da vida mental brasileira.

Analfabetismo ideológico
Nesse contexto agônico, proponho o conceito de analfabetismo ideológico, a fim de compreender o beco sem saída no qual nos metemos.

O analfabeto funcional, cuja onipresença é um fenômeno contagioso e não apenas no Brasil, sabe decodificar primariamente um texto, porém não consegue interpretar seu sentido.

Por sua vez, o analfabeto ideológico não tem dificuldade para interpretar textos complexos. Pelo contrário, pode contar com razoável habilidade retórica e até boa formação intelectual. No entanto, o analfabeto ideológico só apreende do texto — ou a ele atribui — o que seja espelho de suas convicções políticas. Um trapezista das ideias, duplo twist carpado algum é capaz de intimidar o tipo.

(Calma! Você pensa que me perdi num labirinto. Mas eu sei muito bem aonde vou e, embora você possa até duvidar, pelo menos intuo a direção.)

O analfabeto ideológico percorre todo o espectro político, já que ele é daltônico. Aqui, como em tantos outros casos, os extremos se tocam. O analfabeto ideológico se assusta com o espectro que ronda o mundo: o marxismo cultural. Mas, no outro polo, ele também pode vislumbrar a mão do FBI no judiciário tupiniquim.

Voltemos ao filme de Wagner Moura. O nível intelectualmente grosseiro de vídeos postados nas redes sociais e inclusive de programas radiofônicos é uma desagradável surpresa mesmo numa atmosfera carregada como a que constrange a todos no Brasil.

Uma ou duas ilustrações bastam.

Só um caso?

De acordo!

Programa Morning Show, transmitido pela Rádio Jovem Pan.[1] Edgard Piccoli faz a chamada para a apresentação de Marighella no Festival de Cinema de Berlim. Na sequência, Paula Carvalho enumera dados relevantes acerca da vida de Carlos Marighella e sobre o filme. Isto é, segundo os preceitos básicos do jornalismo, apresenta-se ao ouvinte um conjunto de informações para que o ouvinte possa contextualizar a produção.

Eis que Edgard Piccoli passa a palavra a Caio Copolla. Começa o show de obscurantismo com sorriso polido — o estilo do comentarista.

(Espere um pouco! Não digo isso porque eu seja de esquerda e Caio Copolla de direita. Por favor… Continue lendo e muito provavelmente você me dará razão.)

Logo nos primeiros segundos, o comentarista presta um esclarecimento perturbador: “Eu vou assistir o (sic) filme. Eu não sou contra obra de ficção, Edgard”. Ficamos aliviados, pois o opinionista assistirá ao filme. Uma inquietação permanece: alguém poderia ser a priori contra uma obra de ficção?

Não é tudo — na verdade, ainda é muito pouco.

Escutemos o comentarista, que decidiu brindar o ouvinte com sutis análises psicanalíticas: “Existem forças poderosas que movem a humanidade. Uma delas é a culpa”. Não se trata de confissão inesperada ou de bem-vinda autocrítica. Imagina! Caio Copolla arrisca o salto mortal: “Wagner Moura, existencialmente, vive em estado de culpa permanente”. Entenda-se o profético diagnóstico: o êxito popular do personagem Capitão Nascimento pavimentou o terreno para o Capitão Jair Messias Bolsonaro.

Isso mesmo que você leu! Se fosse artista de circo, o comentarista seria um exímio trapezista — e dispensaria todas as redes de proteção. Logo a seguir, num giro inesperado, Copolla muda de área com rara elegância e equilíbrio, ingressando no complexo terreno da ética: “Da mesma forma que a esquerda odeia a verdade, a direita odeia a mentira”.

Nesse mundo confortavelmente dividido entre lobo mau e meninos bons, o opinionista ignora limites possíveis para a erudição fastfood. Ademais, como Caio é generoso, ele edificou a transmissão com pílulas de sabedoria:

É por isso que essa obra de Wagner Moura (…) é iconólatra. A gente falou de iconoclastia; tem também a iconolatria, né? Latros é… é justamente isso… É você adorar o quê? Adorar imagens, símbolos.

Capisce? Seria maldade sublinhar as hesitações, que, a contrapelo, preparam o tropeço maior.

Mas, o que é isso: latros?

“Pelo amor dos meus filhinhos!”, diria o filólogo Silvio Luiz. Não quero ser indelicado, mas como reprimir o bom humor diante de uma etimologia tão criativa?

Vamos lá: afinal, o jovem de direita odeia a mentira.

(Às vezes, porém, um velhinho de esquerda também se interessa pela verdade.)

Iconolatria é uma palavra derivada do grego, formada pela reunião do substantivo eikon (imagem) com o sufixo latria — que vem do substantivo latreia (adoração). A etimologia não é latina, como a palavra inventada por Copolla sugere: latros.

Inventada, eu disse.

Em latim, não existe o sufixo latros; aliás, nem mesmo a palavra! O que de mais próximo se encontra na língua de Cícero é o substantivo latro (-onis), isto é, ladrão…

Pois é.

No fundo, toda mentira etimológica pretende lançar mão de um argumento de autoridade para enobrecer um discurso caricaturalmente ideológico. Ato falho, e pelo sequestro do intelecto, latros iguala analfabeto ideológico e assalto à democracia.

Há mais: o comentarista se refere ao “Manual” e não ao Minimanual do guerrilheiro urbano, texto que evidentemente não leu, embora tenha sobre ele opiniões severas — expressas sempre com honestidade, claro está.

Paremos por aqui: a série de adjetivos-muleta que informa uma erudição-capenga destaca a tarefa urgente no calor da hora: denunciar o analfabetismo ideológico é a condição sine qua non para resgatar a possibilidade de diálogo.

Na próxima coluna, retorno à leitura do Minimanual do guerrilheiro urbano.

Conto com você?

De verdade?

[1] Eis o link para assistir o trecho que comentarei: https://www.youtube.com/watch?v=VwHPZE9H55I. Antes de continuar a leitura, assista ao vídeo com atenção: são apenas 11 minutos.

João Cezar de Castro Rocha

É professor de Literatura Comparada da UERJ. Autor de Exercícios críticos: Leituras do contemporâneo e Crítica literária: em busca do tempo perdido?, entre outros.

Rascunho