Uma rede
Nos últimos dois meses, como sabe o leitor desta coluna, levantei uma série de problemas suscitados pela leitura que proponho do Minimanual do guerrilheiro urbano. Talvez agora possa sintetizá-los numa pergunta: como reunir num programa político o primado da ação revolucionária — em todos os níveis e sem submissão a estruturas de comando — e consistência na orientação dessa mesma ação? Numa seção de grande importância para redimensionar a própria pergunta, O grupo de fogo, Carlos Marighella prometeu: “A antiga hierarquia, à moda da esquerda tradicional, em nossa organização está quebrada”.[1]
A esquerda tradicional, na perspectiva do Minimanual, tinha organização de mais e ação de menos, o que historicamente conduziu à burocratização dos partidos comunistas, dependentes da palavra final de Moscou antes da tomada de decisões, ainda que se tratasse de um tema urgente de política local. Já o grupo revolucionário ideado por Marighella se definia (quase) exclusivamente pela capacidade operacional. Nesse caso, poderíamos inverter a equação? Ou seja, o vaivém constante e o ziguezague ininterrupto do guerrilheiro urbano — qualidades destacadas como o alfa e o ômega de sua atuação — resultariam em ação de mais e organização de menos?
Seria ingênuo, tolo inclusive, pensar que essas dificuldades não foram consideradas pelos quadros da Aliança Libertadora Nacional (ALN), sobretudo por seus idealizadores. A simples recusa do centralismo democrático não seria suficiente para articular um modelo novo de prática política. Ora, a escrita mesma do Minimanual pretendia explicitar esse modelo. Voltemos então à leitura da seção O grupo de fogo:
Para atuar, o guerrilheiro urbano precisa estar organizado em pequenos grupos. Um grupo que não ultrapasse o número de quatro ou cinco guerrilheiros urbanos é o que se denomina um grupo de fogo. (p. 11, grifo do autor)
Escala é tudo
Tão importante quanto a mobilidade, a tática da ALN demandava a existência de pequenos grupos e a escala tornou-se crucial no modus operandi da organização. De um lado, o número reduzido de militantes reforçava a segurança das células, pois mantinha sob razoável controle o fluxo de informações e as tarefas de cada um. Ao mesmo tempo, na eventualidade da prisão de algum revolucionário, sua queda seria imediatamente percebida, o que permitiria que se tomassem sem perda de tempo medidas de proteção do restante do grupo. De outro lado, a escala reduzida favoreceria a centralidade da ação, já que “qualquer grupo de fogo pode decidir (…) sem necessidade de consulta ao comandamento geral” (p. 12). Salvo engano, chega-se mais rapidamente a um acordo acerca de futuros objetivos numa reunião de cinco pessoas do que numa assembleia envolvendo o conjunto da direção partidária! Nos termos do Minimanual, mobilidade máxima e escala mínima levariam à vitória com base no fator que fornece o título de uma seção: A surpresa.
Vejamos:
Para compensar sua fraqueza geral e sua inferioridade em armas diante do inimigo, o guerrilheiro urbano recorre à surpresa. Contra a surpresa, o inimigo nada pode opor, e rende-se perplexo ou é aniquilado.
Desencadeada a guerrilha urbana no Brasil, a experiência revelou que para obter êxito em qualquer operação, o guerrilheiro urbano sempre se baseou na surpresa (p. 16).
Lance de dados de alto risco: mas risco calculado, bem entendido. Na seção A logística do guerrilheiro urbano, Marighella não deixou dúvidas quanto ao sentido estratégico da opção: “O guerrilheiro urbano (…) não dispõe de um exército e, sim, de grupos armados de uma pequena organização intencionalmente fragmentária” (p. 13, grifo meu).
Em síntese: mobilidade máxima, escala mínima, fragmento como forma organizativa, surpresa como modelo paradoxal de planejamento. Essa alquimia improvável conheceu uma tradução conceitual aguda no último parágrafo da seção O grupo de fogo:
A organização é uma rede indestrutível de grupos de fogo e coordenações, de funcionamento singelo e prático, com um comandamento geral que também participa do fogo, pois em tal organização nada se admite que não seja pura e simplesmente a ação revolucionária (p. 12, grifo meu).
Mais claro impossível: entre o líder da ALN, Carlos Marighella, e o mais jovem militante não se estabeleceriam vínculos hierárquicos: sem distinção, ambos deveriam participar das ações armadas. O tempo do revolucionário de gabinete se havia esgotado: somente o trabalho de campo legitimaria o militante — para, quem sabe, chegar o momento almejado do trabalho no campo por meio da eclosão da guerrilha rural. Marighella buscava distanciar-se ao máximo da figura de Luís Carlos Prestes, isto é, do papel do secretário geral do partido que, nos momentos de conflito aberto, quando os militantes da base corriam os maiores riscos, era “preservado” pela direção executiva, geralmente retirando-o de cena. Pelo contrário, Marighella participava diretamente das ações armadas da ALN e nunca aceitou o exílio para proteger-se. Na seção O preparo técnico do guerrilheiro urbano, o primado da participação é encarecido com uma analogia surpreendente, na qual se valoriza “o guerrilheiro urbano que já passou pelo exame vestibular, quer dizer, pela prova de fogo da ação revolucionária, enfrentando o combate com o inimigo (p. 8, grifo meu).[2] Sejamos justos: Marighella prestou inúmeros exames, jamais foi reprovado, e, mesmo desencorajado pelos preocupados companheiros da ALN com o cerco crescente das forças de repressão contra ele, permaneceu fiel a seus princípios até o final.
(Literalmente.)
Indestrutível?
Rede, portanto, é o conceito mais importante do Minimanual, o eixo que assegura sua originalidade, conferindo à reflexão de Carlos Marighella o elemento que estimulou a recepção internacional de suas ideias. E vale sempre recordar: tanto filósofos como Jean-Paul Sartre, que publicou uma seleção de textos de Marighella em sua prestigiosa revista Les Temps Modernes, como militantes de diversos grupos de guerrilha em todo o mundo interessaram-se pelo Minimanual ainda na década de 1960, pois o texto foi traduzido para muitos idiomas, ajudando a redefinir a estratégia da luta revolucionária nos centros urbanos.
Sublinhe-se o ponto decisivo para entender essa repercussão incomum: Marighella empregou rede num sentido preciso, designando uma organização horizontal, que, caracterizada pela complexidade das coordenações no interior da rede, relativiza hierarquias e enfraquece relações verticalizadas. Inaugura-se assim um ritmo rapsódico, ou seja, horizontalizado, que, embora à revelia do propósito revolucionário de Marighella, anuncia aspectos do mundo contemporâneo e do capitalismo financeiro e globalizado.
(Sim, foi o que escrevi, você leu corretamente; ora, em 2018, alguém duvida que o conceito de rede é o centro de gravidade do presente? Espere alguns meses e concluirei esta série desenvolvendo a hipótese.)
Posso ser mais claro: a singularidade do Minimanual consiste exatamente na valorização do conceito de rede e suas consequências radicais no plano de uma organização revolucionária que se estrutura horizontalmente. Uma simples comparação com textos clássicos de Ernesto Che Guevara ilumina a força da concepção de Carlos Marighella.
Aqui, o inesperado não fará surpresa alguma porque você antecipou: no próximo mês, colocarei em paralelo La guerra de guerrillas e o Minimanual do guerrilheiro urbano.
[1] Carlos Marighella. Minimanual do guerrilheiro urbano, p. 11, grifo meu. Nas próximas ocorrências, mencionarei apenas o número da página citada. Alterei ligeiramente a pontuação do original para efeito de clareza.
[2] Na seção “O assalto a banco – modalidade popular de assalto”, o termo retorna: “Hoje tal tipo de assalto é largamente usado e tem servido como exame vestibular do guerrilheiro urbano na aprendizagem da técnica de guerra revolucionária” (p. 28, grifo meu).