Minimanual do guerrilheiro urbano: leituras e prismas (5)

Marighella atribuía grande importância ao militante que fosse um motorista de habilidade comprovada
Carlos Marighella, autor de “Minimanual do Guerrilheiro Urbano”
24/12/2018

Mobilidade como meta
Na seção O tiro — a razão de ser do guerrilheiro urbano, Carlos Marighella esclareceu o núcleo definidor da ação revolucionária na situação radicalmente assimétrica que define a guerra de guerrilha:

(…) o guerrilheiro urbano não se pode dar ao luxo de entrar em combate sem saber atirar. E ao enfrentar o inimigo deve estar sempre saltando de um lado para outro, porque, parado, será um alvo fixo, e como tal bastante vulnerável.[1]

Essa recomendação é reiterada tantas vezes que o leitor cuidadoso do Minimanual não pode deixar de indagar: aqui, o ziguezague deve ser entendido como uma técnica invencível de combate ou, num horizonte mais modesto, como uma estratégia astuta de sobrevivência? No fundo, entre esses extremos, que prometem a vitória épica tanto quanto anunciam o fracasso previsível, definiu-se a sorte dos movimentos de luta armada no Brasil dos anos de chumbo.

O tema retorna na seção A técnica do guerrilheiro urbano. A mobilidade como meta essencial é traduzida num programa tático:

E é esta a razão por que jamais nessa técnica urbana se destina a estabelecer ou defender qualquer base fixa ou a permanecer em qualquer ponto esperando o cerco da reação para repeli-lo (p. 15, grifos meus).

Num nível imediato, as passagens são complementares e reforçam o argumento; afinal, seria contraditório advogar o fluxo ininterrupto como razão de ser do guerrilheiro urbano e ao mesmo tempo propor a tomada de posições militares; ação que obrigatoriamente implicaria a fixação do militante num ponto determinado, a ser inicialmente ocupado e então defendido. A coerência do texto estaria assegurada.

No entanto…

Ora, os dois trechos lançam mão de advérbios que demandam análise pela sua contiguidade: na primeira citação, sempre; na segunda, jamais.

Reunidos, os advérbios produzem um curto-circuito revelador.

Sempre, jamais — talvez, nunca
Em lugar de resolver de imediato a tensão, é melhor agudizá-la. Sigamos na leitura cerrada do Minimanual, valorizando as passagens que tratam do dilema da mobilidade, por assim dizer. As ocorrências são inúmeras; selecionemos as mais significativas.

Na seção As vantagens iniciais do guerrilheiro urbano, em dois tópicos encontramos o motivo determinante, apresentado numa forma que evoca epigramas:

1) deve apanhar o inimigo de surpresa;

(…)

3) deve ter [mais] mobilidade e rapidez do que a polícia e demais forças de repressão; (p. 18 grifo meu).

No contexto da luta armada urbana, mobilidade e rapidez eram verdadeiros sinônimos, pois nas condições objetivas da guerrilha o conflito direto e continuado equivaleria a uma opção suicida. Daí a insistência em planejar ações que deveriam apanhar o inimigo de surpresa, com a esperança nada secreta de compensar a disparidade de forças por meio de ataques inesperados e acima de tudo velozes.

(Dentro da noite veloz — você sabe muito bem.)

A centralidade da questão exigiu um capítulo inteiramente dedicado ao assunto; capítulo esse sintomaticamente intitulado Mobilidade e Rapidez (p. 18-20). Nele, a rapidez emerge como a essência da ação revolucionária.

Eis um momento decisivo:

Realizando sistematicamente ações que duram poucos minutos e afastando-se do local com veículos motorizados, rapidamente o guerrilheiro urbano bate em retirada, escapando à perseguição (p. 18, grifos meus).

Muito embora não soubesse conduzir, Marighella — talvez por isso mesmo — atribuía grande importância ao militante que fosse um motorista de habilidade comprovada. Essa era uma qualidade sine qua non para a execução de tarefas indispensáveis à guerrilha, com destaque para operações propriamente cinematográficas de fuga. Desse modo, levava-se ao pé da letra o primeiro mandamento, nem tanto da Ação Libertadora Nacional (ALN) como um todo quanto do estrategista Carlos Marighella. Em outras palavras, o guerrilheiro urbano não deveria buscar o confronto heroico, gesto voluntarista e de consequências em geral desastrosas para a organização. Pelo contrário, o militante deveria privilegiar o enfrentamento oportuno, por definição momentâneo e anônimo: um abrir e fechar de olhos, a fim de impedir a aproximação das forças de repressão, muito superiores em número e em equipamento. O elemento surpresa, portanto, forneceria o eixo das ações revolucionárias nas circunstâncias particulares da luta armada nas cidades.

E se por acaso o militante ainda tivesse dúvidas, Marighella teve a cortesia de repisar a advertência:

O guerrilheiro urbano deve responder a isso com a leveza de seu armamento de fácil transporte, para fugir sempre, com o máximo de rapidez, jamais aceitando a luta aberta. O guerrilheiro urbano não tem outra missão senão atacar e retirar (p. 19, grifos meus).

Retornam os dois advérbios adversários — agora em nova ordem: sempre, jamais. Mas recordemos a lição da escola: a ordem dos fatores não altera o produto. Sua reunião não mais demanda um ato de leitura-montagem, já que se encontram um ao lado do outro. Como entender a fórmula com sabor de paradoxo: sempre, jamais? Assim: praticamente de mãos dadas, num improvável consórcio. E não é difícil antever o que poderá sair desse conúbio — segundo a advertência póstuma do revolucionário-mor da literatura brasileira.

Ubíquo e invisível?
Hora de retomar o impasse delineado na última coluna: na lógica do Minimanual, a guerrilha urbana seria apenas o primeiro passo do propósito real da revolução brasileira: o desencadeamento da guerrilha rural. As ações da militância urbana não constituíam um fim em si mesmo, porém o meio mais adequado para acelerar o processo da guerrilha rural. Nessa ótica, a complexa equação montada por Marighella tornava-se logicamente inteligível — o que não quer dizer necessariamente exequível.

Pois bem: a ubiquidade invisível ou a onipresença sem rastros do guerrilheiro urbano dependeriam fundamentalmente de sua mobilidade e rapidez; qualidades que permitiriam a arrecadação de recursos para a dificílima e onerosa montagem da guerrilha rural. Montagem que só seria possível em condições opostas às circunstâncias da guerrilha urbana.

Vejamos: na guerrilha urbana, operações de poucos minutos; na guerrilha rural, projetos de muitos anos. De um lado, anonimato programático e desenraizamento deliberado; de outro, cumplicidade a ser construída e pertencimento a ser conquistado. A cidade convertida em território fugaz de passagem e de trânsito sem paradas; o campo, terra para fixar-se e criar vínculos permanentes.

Essa diferença abissal é definitivamente explorada em duas seções, Incursões e invasões, Ocupações.

Um exemplo de cada capítulo:

Incursões e invasões são ataques rápidos a estabelecimentos (…). Incursões e invasões dão melhores resultados se efetuadas à noite (p. 19, grifos meus).

Celeridade e escuridão: outra vez, dentro da noite veloz todo guerrilheiro urbano é desde sempre sem rosto. Deduz-se a forma de ocupação favorecida por Marighella: “é sempre temporária, e, quanto mais rápida, melhor (p. 30, grifos meus).

Um problema sério se impôs: em meio a tamanha pressa, quase uma correria sem pausa nem trégua, como reagrupar as forças? Como coordenar as iniciativas das diversas células que compunham a rede ALN? Como canalizar a energia revolucionária contra um alvo específico? Como centralizar os recursos eventualmente levantados para a eclosão da guerrilha rural?

Sobretudo: como encontrar tempo para levar adiante o incontornável trabalho de mobilização popular?

Pois é: os problemas se avolumam e minha leitura não é capaz de oferecer respostas.

(Perguntas sem resposta: poema de Machado de Assis.)

[1] Carlos Marighella. Minimanual do guerrilheiro urbano, p. 11, grifo meu. Nas próximas ocorrências, mencionarei apenas o número da página citada.

João Cezar de Castro Rocha

É professor de Literatura Comparada da UERJ. Autor de Exercícios críticos: Leituras do contemporâneo e Crítica literária: em busca do tempo perdido?, entre outros.

Rascunho