Minimanual do guerrilheiro urbano: leituras e prismas (3)

O leitor cuidadoso por certo não se surpreende com a onipresença do personagem
Carlos Marighella, autor de “Minimanual do Guerrilheiro Urbano”
29/10/2018

Quando dizer é fazer?
O leitor cuidadoso do Minimanual do guerrilheiro urbano por certo não se surpreende com a onipresença do personagem; afinal, o ensaio é um programa para orientar sua ação e sobretudo um guia para aprimorar sua formação. Vale dizer, a leitura do manifesto revolucionário de Marighella deveria resultar na adesão de novos combatentes. No quinto parágrafo de À guisa de introdução, o propósito é explicitado com lhaneza e o líder guerrilheiro se dirige diretamente ao imaginário público leitor:

Àqueles que lerem este minimanual e concluírem que não devem ficar parados, ouso apelar para que sigam as instruções nele contidas e se engajem na luta desde já. E isto porque, em qualquer hipótese e em qualquer circunstância, o dever de todo revolucionário é fazer a revolução.[1]

Frase célebre que sintetizou a forma da ação política da Aliança Libertadora Nacional (ALN), que deliberadamente se afastava do modelo do centralismo democrático do Partido Comunista da União Soviética (PCUS) e por extensão dos demais partidos comunistas de todo o mundo. Na prática, esse modelo concentrava as decisões no nível mais alto da direção partidária, cujas resoluções deveriam ser cegamente obedecidas pelos membros do partido. Nesse horizonte, destacou-se a figura tirânica do comissário com sua função inquisitorial de verificar a correta aplicação dos princípios do centralismo democrático.

Tal “democracia” já desagrava aos militantes mais aguerridos, especialmente após o Relatório Khrushchov, no qual os crimes de Joseph Stálin foram denunciados. Ora, nesse caso, como negar que o centralismo democrático foi convertido em instrumento do culto à personalidade? Recorde-se que o Relatório, lido em 25 de fevereiro de 1956 no XX Congresso do PCUS, tinha como título oficial Sobre o culto à personalidade e suas consequências.

No Brasil, a notícia do discurso de Khruschov demorou alguns meses para chegar: somente no dia 7 de julho de 1956 o Estado de S. Paulo mencionou o Relatório e seu conteúdo explosivo. Os membros do Partido Comunista no Brasil duvidaram da veracidade das informações. Foi preciso esperar até o final de agosto quando Diógenes Arruda voltou de Moscou e numa reunião do Comitê Central confirmou o teor do Relatório. A reação emocional de Carlos Marighella dá bem a medida do abalo provocado pelas revelações:

Marighella desmoronou. Para ele, o tormento não seria apenas a mutação de Stálin em tirano: tudo o que vivera desde os verdes anos da Bahia parecia não ter sentido. (…) O tribuno de talento tentou alinhavar uma frase à outra, engasgou, sucumbiu com os soluços e se desidratou de tanto chorar.[2]

O golpe militar de 1964 e a falta de reação tanto do governo João Goulart quanto do Partido Comunista foi a gota d’água. Era somente uma questão de tempo até que Marighella formasse uma organização política que se afastasse o máximo possível dos ditames do centralismo democrático.

O Minimanual é cristalino:

Cada companheiro que estiver contra a ditadura militar e queira lutar contra ela, pode fazer uma coisa qualquer, uma tarefa por mais insignificante que seja. (1)

É evidente que tal linha de ação só é exequível se o militante dispuser de autonomia para tomar decisões sem ter de esperar e acatar as deliberações de um distante e geralmente inacessível Comitê Central. E para não deixar espaço para hesitações, o tema é repisado:

Nem sempre é possível prever tudo, e o guerrilheiro urbano não pode ficar perplexo, à espera de ordens. Sua obrigação é agir, encaminhar soluções adequadas para cada problema que enfrenta, e não se encolher. É melhor errar agindo, do que nada fazer para não errar. Sem inciativa não há guerrilheiro urbano. (4)

Mil faces de um homem leal
Ao definir “O que é o guerrilheiro urbano”, Marighella principia uma operação textual que salvo engano tem passado despercebida. Trata-se de equivalência entre “os guerrilheiros urbanos, os sacerdotes revolucionários, os estudantes e os cidadãos que repelem o fascismo e querem a liberdade” (2).

Explique-se o ponto — ele é decisivo.

Superar o centralismo democrático implicava um gesto ainda mais radical, qual seja, abolir as estruturas tradicionais do partido político de esquerda, especialmente a concepção leninista de vanguarda. Ora, em lugar de uma elite dirigente, numa rígida hierarquia vertical de comando, a ALN inovou ao imaginar a horizontalização das atividades revolucionárias, que somente estariam conectadas por meio de uma complexa rede em movimento.

Em outras palavras, a ALN poderia crescer sem que Comitê Central algum pudesse controlar nem mesmo o número de seus militantes. Marighella buscou pelo menos antever esse autêntico milagre da multiplicação de guerrilheiros mediante a imaginação do surgimento de novos tipos de militante.

Vejamos.

Ao tratar de O tiro — a razão de ser do guerrilheiro urbano, Marighella ampliou as categorias antes elencadas: “O aperfeiçoamento na arte de atirar produz um tipo especial de guerrilheiro urbano, que é o franco-atirador, categoria de combatente solitário, indispensável para as ações isoladas” (11).

Próximo do final do manifesto, as modalidades de militância se tornam vertiginosamente múltiplas e parecem emergir em todas as frentes: “As táticas de rua revelaram um novo tipo de guerrilheiro urbano que participa das manifestações de massa. É este o tipo que denominamos de guerrilheiro urbano manifestante” (31-32). Unidas, essas categorias revitalizariam a luta revolucionária: “Os franco-atiradores são muito bons para as manifestações de massa e juntamente com o guerrilheiro urbano manifestante desempenham um papel importante” (32.)

Adiante, Marighella vislumbra outra modalidade: “Guerrilheiros urbanos industriais são excelentes como sabotadores da indústria” (37). Função que rapidamente se autonomiza: “Os centros de repressão de caráter militar e policial devem igualmente constituir motivo de atenção do guerrilheiro urbano sabotador” (38).

Num tópico sensível, Resgate de feridos, novos tipos não param de surgir: “O guerrilheiro urbano médico, estudante de medicina, enfermeiro, farmacêutico ou simplesmente iniciado em socorros de urgência é uma das necessidades da luta armada moderna” (49).

No derradeiro capítulo do Minimanual, Marighella parece dar-se conta do paradoxo propriamente insolúvel: como manter a coerência mínima de uma organização revolucionária sem dispor de algum nível de controle de sua militância? O capítulo sintomaticamente se intitula Guerrilha Urbana – Escola de Seleção do Guerrilheiro. No entanto, o esforço disciplinador não resiste à geração espontânea de militantes: “O guerrilheiro urbano operário participa da luta atual fabricando armas, sabotando e preparando sabotadores e dinamitadores” (50). Na mesma página, poucas linhas adiante, encontramos o “guerrilheiro camponês” e os “guerrilheiros rurais”. Até na última página a criatividade da luta armada segue a pleno vapor: “O guerrilheiro urbano intelectual ou artista é a mais moderna aquisição da guerra revolucionária brasileira” (51). Somos também apresentados ao “guerrilheiro urbano eclesiástico” (51). Por fim, descobrimos que, “quanto à mulher, sua participação na guerra revolucionária, e em particular na guerrilha urbana, tem se caracterizado por combatividade e tenacidade inexcedíveis” (51).

No primeiro momento, essa concepção, digamos, de uma dinâmica estrutura sem centro multiplicou a potência da ALN; porém, logo a seguir, causou seu colapso. Nesse sentido, a imaginação revolucionária de Marighella procurou estar à altura do desafio, mas a simples proliferação de tipos de guerrilheiro urbano sugere um impasse definitivo.

Você já sabe: como veremos na próxima coluna.

[1] Carlos Marighella. Minimanual do guerrilheiro urbano, p. 1, grifos meus. Nas próximas ocorrências, mencionarei apenas o número da página citada.

[2] Mário Magalhães. Marighella. O guerrilheiro que incendiou o mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2012, p. 233.

 

João Cezar de Castro Rocha

É professor de Literatura Comparada da UERJ. Autor de Exercícios críticos: Leituras do contemporâneo e Crítica literária: em busca do tempo perdido?, entre outros.

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