Mimesis: Erich Auerbach em exílio (2)

Em "Mimesis", o câmbio domina o texto, convertendo-se no tema do ensaio Philologie der Weltliteratur
Erich Auerbach, autor de “Mimesis”
01/11/2013

O fio da meada
Terminei a última coluna anunciando a transformação da perspectiva de Erich Auerbach no tocante à tradição definidora da mescla de estilos que fundou a cultura ocidental e cujo fruto mais destacado foi o romance realista do século 19.

(Eis a posição do autor de Figura — bem entendido.)

Em Mimesis, o câmbio domina o texto, convertendo-se no tema do ensaio Philologie der Weltliteratur.

Apresento minha hipótese economicamente, privilegiando a leitura de três passagens: do penúltimo capítulo, “Germinie Lacerteux”, do final do último capítulo, “A meia marrom”, e do “Epílogo”.

Auerbach pensava no processo de homogeneização cultural em escala planetária. Após a Segunda Guerra Mundial, a acelerada norte-americanização de hábitos cotidianos e a internacionalização de um gigantesco aparato de entretenimento provocaram reações fortes. Theodor Adorno e Max Horkheimer, por exemplo, deixaram os Estados Unidos, regressaram à Alemanha, e se dedicaram à análise crítica da indústria cultural em oposição à idéia simplista de uma inovadora “mass culture”.

Auerbach preocupava-se com o mesmo fenômeno.

É o que se pode depreender das páginas finais do Mimesis:

Os estratos populacionais e as suas diferentes formas de vida tornaram-se inextricavelmente mesclados; já não há nem mesmo povos exóticos. Um século atrás (para Mérimée, por exemplo) os corsos ou os espanhóis pareciam ainda exóticos; hoje esta palavra seria totalmente inadequada para os chineses de Pearl Buck. Por baixo das lutas e também através delas, realiza-se um processo de igualização econômica e cultural; ainda há um longo caminho a ser percorrido para se chegar a uma vida comum do homem sobre a terra, mas esta meta já começa a se tornar visível.[2]

Afinal, surgiam “os primeiros indícios da uniformização da simplificação que se prenuncia” (498). Auerbach conclui o “epílogo” evocando “aqueles que conservaram serenamente o amor por nossa história ocidental” (502), como se já não dispusesse de outro argumento, a não ser a adesão de fundo emotivo a um mundo que se dilacerava de maneira palpável.

A dicção dessas páginas reúne melancolia e serenidade, incluindo a afirmação em tese paradoxal:

Aqui não há nenhuma biblioteca bem provida para estudos europeus; as comunicações internacionais estavam paralisadas; de tal forma que tive de renunciar a quase todas as publicações periódicas, à maioria dos textos mais recentes, e por vezes a edições críticas dos meus textos dignos de confiança. (…) Aliás, é bem possível que este livro deva agradecer a sua existência precisamente à falta de uma grande biblioteca especializada; se tivesse podido tentar informar-me a respeito de tudo o que foi feito acerca de tantos temas, talvez nunca tivesse chegado a escrevê-lo (502).

No entanto, como se vestisse a pele do professor universitário turco, ou, por que não?, do intelectual latino-americano, Auerbach soube converter a precariedade em estímulo, e, na ausência de material bibliográfico atualizado, imaginou uma audaciosa síntese da formação da cultura ocidental.

Nesse contexto, é preciso discutir a tradução dominante do subtítulo de Mimesis: Dargestellte Wirklichkeit in der abendländischen Literatur.

Proponho uma alternativa ao modelo usual: Representação; Représentation; Representation, Representación, Rappresentazione. Ora, parece muito mais provocador respeitar o particípio em alemão — Dargestellte — em lugar de transformá-lo num cômodo substantivo — Darstellung. Ademais, ao referir-se à capacidade mais geral, de recorte abstrato, Auerbach sempre foi preciso. No final do primeiro capítulo, por exemplo, ao mencionar a “representação européia da realidade” (20), a escolha vocabular não deixa margem a dúvida: “die europäische Wirklichkeitsdarstellung”.[3]

Portanto, no subtítulo de Mimesis, Auerbach não desejou definir uma operação abstrata de representação da realidade, imune a circunstâncias específicas; pelo contrário, ele considerou momentos históricos determinados, nos quais formas específicas de apreensão realista foram representadas.

(Ou expostas, como sugeriu Käte Hamburger em 1949, conforme Leopoldo Waizbort recordou com pertinência.[4])

Eis o ponto decisivo: na reconstrução histórica proposta por Auerbach, a mescla do mundo de formas grego, marcado pela clareza e mesmo pela redundância, com o mundo de formas hebraico, definido pelo meio-tom e pela elipse, fornece o fundamento que permite superar a doutrina clássica da “separação de estilos”, mergulhando em seu oposto, a “mescla de estilos” (Stilmischung). Somente assim foi possível entender o cotidiano do homem comum com olhos sérios e não apenas cômicos; apenas nessa forma de ver e representar o mundo tornou-se viável desenvolver uma representação séria e potencialmente trágica da realidade cotidiana.

Daí, os 19 capítulos da edição original de Mimesis — como se sabe, o capítulo 14, “A Dulcineia encantada”, foi especialmente escrito para a tradução espanhola de 1948, editada pelo Fondo de Cultura Económica — têm a seguinte orientação: o primeiro capítulo estabelece as duas visões do mundo, cuja mescla engendra a cultura ocidental; os 18 capítulos seguintes acompanham exemplos concretos da “mescla de estilos”, a partir da análise detalhada de textos específicos. O ponto culminante do longo processo seria o “Realismo moderno”, observado na Introduction aux études de philologie romane.

Capítulo a capítulo, Auerbach compôs um mosaico dos limites e dos impasses enfrentados pela visão do mundo realista. Há sempre uma pedra no meio do caminho da plena realização do realismo — aqui, a redundância se impõe.

Houve, contudo, um instante histórico em que, do ponto de vista formal, os requisitos elencados por Auerbach se reuniram na explosão do romance realista: tratamento sério e potencialmente trágico da realidade cotidiana, numa inédita democratização do gosto, ou pelo menos, da visão do mundo.

Eis, porém, o retorno do fantasma anunciado na Introduction, através da sintomática distinção entre público e povo. No exato instante em que a plena incorporação de elementos comezinhos e de personagens de extração popular poderia ter levado à consumação da prosa do mundo, surgiu um desvio inquietante:

O próprio fato de o romance Germinie Lacerteux tratar novamente de uma criada, isto é, de um pingente da burguesia, mostra que a tarefa de inclusão do quarto estado na representação artística séria não é entendida nem atacada em seu cerne. O que os cativava no tema era algo totalmente diferente: era o fascínio sensorial pelo feio, repulsivo e doentio (448).

Para Auerbach, a ampliação do horizonte de representação séria da realidade cotidiana não se abriu para a plena realização da promessa do realismo, propiciando antes o retorno inesperado de uma espécie de “separação de estilos”. E isso não mais com base numa concepção normativa de arte, porém, através de uma recepção motivada por clichês e reiterações. O inteiro edifício do realismo, tal como desenhado na arquitetura de Mimesis, entrou em colapso no momento em que parecia ter triunfado.

O capítulo termina com uma breve análise do realismo russo, cuja síntese evoca a própria situação da cultura turca nos anos de 1930:

Mas a confrontação russa com a cultura européia durante o século 19 não foi importante apenas para a Rússia. Por mais confusa e diletante que apareça freqüentemente. Por mais agravada que esteja de informação insuficiente, falsa perspectiva, preconceito e paixão, ela não deixava de possuir um instinto extremamente seguro para detectar aquilo que, na Europa, estava quebradiço e sujeito a crises (479).

(Como se o colapso da própria civilização ocidental fosse, acima de tudo, um dilema propriamente literário; uma questão de intensidade de leitura da tradição.)

“Der” não “Und”
Philologie der Weltliteratur: mais do que um ensaio, autêntico réquiem da utopia goetheana do mundo sem fronteiras, cujo passaporte seria a literatura.

O ciclo se fecha: da normatização, dominante em Introduction aux études de philologie romane, à redação de autêntico obituário da cultura ocidental.

(Não deixaria de ser revelador o contraste com ensaios de Ernst Robert Curtius acerca da herança da visão do mundo goethena, escritos na mesma época.)

Começo aludindo a outro problema de leitura.

Em 1969, veio à luz uma tradução do ensaio para o inglês, assinada por Edward e Marie Said.

Edward Said foi um leitor apaixonado de Auerbach e especialmente de Mimesis. No entanto, a tradução proposta envolve um erro grave de interpretação. Em inglês, eles escreveram: “Philology and Weltliterature”. Isto é, o genitivo em alemão se transformou em mera conjunção aditiva em inglês. Tudo se perde nessa escolha precipitada, pois, agora, “Filologia e Weltliteratur” compartilham o mesmo eixo temporal, são expressões contemporâneas. Contudo, a argúcia do título de Auerbach se oculta no emprego do genitivo: “Filologia da Weltliteratur”.

O exercício filológico supõe que o objeto estudado pertence ao passado da cultura; daí a necessidade do trabalho hermenêutico para sua apreensão. No título do ensaio, Auerbach cifrou sua interpretação do tempo que lhe coube viver. Então, o estilo de vida de um romanista — aludo à proposta de Ottmar Ette: “Romanistik ist ein Lebensstil” — converteu-se em relíquia, anacronismo nem sempre deliberado.

Em seu obituário da Weltliteratur, Auerbach lançou a dura pergunta:

(…) quantos homens dominarão o conjunto do material desse campo específico, com todas as suas ramificações e direções de pesquisa? Como é possível, em tais circunstâncias, pensar numa filologia sintético-científica da literatura mundial?

Ainda existem pessoas que, ao menos no tocante à Europa, dominam o conjunto do material; mas todas elas pertencem, tanto quanto sei, à geração que cresceu antes da guerra. Será difícil substituí-la (…).[5]

Como se desejasse comprovar a dificuldade, no último parágrafo do ensaio, Auerbach ofereceu uma longa citação, em latim, do Didascalicon, de Hugo de São Vítor.

Acrescente-se: sem tradução. O tropeço na leitura da passagem remete à sutileza do título do ensaio.

(Filologia da Weltliteratur: sem dúvida.)

Coda
Walter Benjamin talvez não tenha se suicidado na Espanha; talvez tenha mesmo vindo ao Brasil. Afinal, o cargo de professor na Universidade de São Paulo tornaria irrelevante o insucesso acadêmico de A origem do drama barroco alemão.

Pelo menos é o que confidenciou a Auerbach: 

Caríssimo Erich, 

Eis-me de malas prontas para viajar ao Brasil. Aquela possibilidade de lecionar na Universidade de São Paulo, aventada em 1935, finalmente se concretizou num convite oficial. (…)

O fato de ser uma Universidade muito jovem traz grande alento, assim não implicarão por não ter a Tese de Livre-Docência — quem sabe não refaço um pouco o trabalho, encomendo uma tradução e obtenho o título lá mesmo? Sei que a ansiedade está me deixando um tanto afobado. Vamos deixar as coisas se desenrolarem, sem inútil antecipação. Contudo, se um dia dominar o idioma, não sei se será possível filosofar em português, nunca ouvi falar em filósofo brasileiro. Decerto haverá. Talvez.[6]

Quantos filólogos turcos Erich Auerbach terá formado?

Em seus anos em Istambul, quantos filósofos turcos terá lido?

Embora procedentes, tais questões apenas arranham a superfície do dilema intuído por Auerbach. Pelo avesso, a celeridade da modernização periférica turca agravava as contradições que também se insinuavam na Alemanha, na Itália, na França — na Europa em conflito.

Pode-se, por isso, reler a frase final do “Epilegomena zu Mimesis” como uma resposta sutil, especialmente aos reparos feitos por Ernst Robert Curtius a sua obra-prima:

Mimesis tem consciência de ser um livro escrito por uma determinada pessoa, numa situação determinada no início dos anos 1940.[7]

(Sem dúvida: livro escrito por um judeu alemão, exilado em Istambul.)

NOTAS

[1] Versão reduzida deste texto foi apresentada em Congresso da Fundação Alexander von Humboldt, na Universidade Federal do Paraná. Agradeço a Paulo Astor Soethe pelo convite, assim como a Otmar Ette e Steffen Mehlich pelo fecundo diálogo.

[2] Erich Auerbach. Mimesis. A representação da realidade na literatura ocidental. São Paulo: Editora Perspectiva, 1976, p. 497. Nas próximas citações, apenas indicarei o número da página.
[3] Erich Auerbach. Mimesis: Dargestellte Wirklichkeit in der abendländischen Literatur. Tübingen: A. Francke Verlag, 2001, p. 27.
[4] Leopoldo Waizbort. “Erich Auerbach sociólogo”. Tempo Social (Junho: 2004), p. 85.
[5] Erich Auerbach. “Filologia da literatura mundial”. Ensaios de literatura ocidental. Davi Arrigucci Jr. e Samuel Titan Jr. (orgs.) Tradução Samuel Titan Jr. e José Marcos Mariani de Macedo. São Paulo: Livraria Duas Cidades / Editora 34, 2007, p. 364.
[6] Evando Nascimento. “O dia em que Walter Benjamin daria aulas na USP”. Cantos do mundo. (Contos). Rio de Janeiro: Record, 2011, p. 155 e 162.
[7] Erich Auerbach. “Epilegomena a Mimesis.” Tradução de Izabela Furtado Kestler. Johannes Kretscmer e João Cezar de Castro Rocha (orgs.). Fortuna crítica de Erich Auerbach. Rio de Janeiro, UERJ /Instituto de Letras, 1992, p. 16. Texto originalmente publicado como “Epilegomena zu Mimesis”, na revista Romanische Forschungen 65, 1/2 (1953).

João Cezar de Castro Rocha

É professor de Literatura Comparada da UERJ. Autor de Exercícios críticos: Leituras do contemporâneo e Crítica literária: em busca do tempo perdido?, entre outros.

Rascunho