A hora e a vez de René Girard?
Na coluna de maio (#265), mencionei a violência digital como um dos traços mais salientes do avanço transnacional da extrema direita. A fim de propor uma análise nova do fenômeno, chegou a hora e a vez de recorrer à obra de René Girard para iluminar o cenário contemporâneo.
[And now the end is near…]
As redes sociais estimulam (mas atenção: não determinam) um comportamento perfeitamente expresso num vocabulário ainda mais sintomático porque adotado, por assim dizer, “espontaneamente”.
Ora, sem nunca interromper o fluxo da circulação de dados para refletir, pois o universo digital é todo ele da ordem da simultaneidade, uma constelação de termos se impôs no nosso cotidiano.
Vejamos.
Não é verdade que desejamos postar mensagens que “viralizem”? Não reproduzimos, sem prestar atenção no fenômeno do contágio mimético, “memes” os mais agressivos? Não aderimos com paixão nada medida aos indefectíveis “cancelamentos” nossos de cada dia? Não participamos com entusiasmo vitimário de “linchamentos virtuais”? Por fim, não adotamos como régua e compasso o número de “likes” que recebemos; adaptando futuras postagens ao modelo de maior êxito para obter um número maior de “likes”. Isto é, buscamos imitar o que os outros aprovaram.
[A tautologia é o sal da terra no universo digital.]
Naturalmente, o caráter mimético das redes sociais não escapa a nenhum de seus usuários — inclusive os menos preocupados com a dinâmica do sistema que, no entanto, absorve e controla uma parte considerável de suas vidas. Mas isso não quer dizer que a reflexão necessária sobre as consequências da onipresença da imitação no universo digital seja desenvolvida por esses mesmos usuários.
Numa paisagem iluminadora de Dom Casmurro, no capítulo Otelo, o narrador Bento Santiago antecipou candidamente muito do dilema atual:
Jantei fora. De noite fui ao teatro. Representava-se justamente Otelo, que eu não vira nem lera nunca; sabia apenas o assunto, e estimei a coincidência. Vi as grandes raivas do mouro, por causa de um lenço — um simples lenço! — e aqui dou matéria à meditação dos psicólogos deste e de outros continentes, pois não me pude furtar à observação de que um lenço bastou a acender os ciúmes de Otelo e compor a mais sublime tragédia deste mundo. Os lenços perderam-se. Hoje são precisos os próprios lençóis; alguma vez nem lençóis há e valem só as camisas.
À simultaneidade, já discutida nesta longa série de artigos, associa-se o apagamento completo de fronteiras entre o público e o privado. A exposição da intimidade passa a ser a regra, materializada na voga mundial dos reality shows, sempre mais “naturais” quanto mais minuciosos são os roteiros que organizam a ação dramática. Seria difícil imaginar o êxito desse gênero sem o concurso das redes sociais. A despolitização da pólis torna-se mais um degrau nesse longo processo de extensão planetária. A agudeza de Machado de Assis leva longe, pois, hoje, no fundo, somos todos descamisados, num universo dominado por opinionistas severos de livros sequer consultados.
[Opinionista: palavra exata que os italianos inventaram para descrever a febre contemporânea da geração espontânea de opiniões acerca do que se ignora.]
Mais uma vez, o vocabulário cotidiano é revelador: viralizar, contágio mimético, meme, caçador de likes, cultura do cancelamento, linchamento virtual, opinionismo — e essa lista de quase-conceitos poderia seguir, mas seu acréscimo imprudente só favoreceria o esquecimento do que mais importa sublinhar: o resultado da imitação, sobretudo seu processo, não é anódino como se costuma pensar.
[Fotografamos os objetos que desejamos olvidar — recordou Franz Kafka em seu Diário.]
Muito pelo contrário e a obra girardiana é um autêntico memento mori dos desdobramentos violentos da imitação, que, ao fim e ao cabo, lindam com a questão da finitude.
A violência da imitação
O reconhecimento da centralidade da imitação na ordem da cultura naturalmente não pode ser considerada uma contribuição da teoria mimética, tal como desenvolvida pelo pensador francês René Girard. Afinal, Platão e Aristóteles já haviam assinalado essa circunstância em suas obras.
A mimesis e seus desafios são temas constantes nos diálogos platônicos, ocupando papel de protagonista em A república, levando mesmo à expulsão do poeta da sociedade ideal, devido ao potencial de desagregação atribuído à mimesis. Refiro-me, claro, à disputa, que se encontra no centro das preocupações de Platão, entre filosofia e poesia; guerra discursiva decidida a favor dos filósofos, como se explicita no famoso Livro X de A república.
Na Poética, numa sentença célebre, Aristóteles deu à questão uma abordagem que atravessou séculos: “o imitar é congênito no homem e os homens se comprazem com o imitado”. Aqui, a mimesis comparece como um traço universal, definidor de nossa condição. Portanto, é a imitação que nos torna humanos, numa deriva antropológica que muito interessou a René Girard.
Mas não é tudo.
O autor de Mensonge romantique et vérité romanesque (1961) formulou seu pensamento a partir de uma premissa surpreendente: em lugar de ação passiva, atitude “neutra”, ou de ação puramente positiva de aprendizagem, a imitação é a matriz da violência socialmente motivada. Aceita a hipótese (espere a próxima coluna e esmiuçarei a ideia), uma equação rigorosa daí decorre: quanto mais intenso o nível de imitação, mais violento será o ambiente que retroalimenta a própria imitação.
(A tautologia… Pois é!)
Consequência direta da premissa girardiana: como a imitação é, por definição, contagiosa, e, por isso, a intensidade do gesto mimético somente pode aumentar, a violência, mimeticamente engendrada, não pode senão escalar — até chegar a um extremo de tensão, num acirramento que, em tese, estará fora de controle e que, assim, tende a produzir explosões de violência “aparentemente” imotivada, porém inscrita na dinâmica da primeira imitação.
Em alguma medida, tudo se passa como se o pensador francês combinasse as filosofias platônica e aristotélica, numa mescla cujo resultado é explosivo, pelo acréscimo que propõe.
Explico.
Girard retoma o ponto de vista antropológico de Aristóteles: o imitar é próprio do ser humano; na verdade, em sentido amplo, de todo vivente, já que estruturas miméticas são encontradas inclusive no reino vegetal.
Ao mesmo tempo, Girard radicaliza a descoberta de Platão acerca do caráter inquietante da mimesis. O filósofo grego corretamente identificou seu efeito potencialmente desagregador, porém, supôs mantê-lo sob controle pelo exílio do poeta. Já o pensador francês deu um passo atrás e muitos à frente.
(Passo a passo.)
A mimesis, de fato, é contagiosa, e seu contágio, de fato, é desagregador, muito embora em seu primeiro momento a imitação seja o elemento indispensável para a formação de grupos sociais. A razão desse paradoxo, contudo, teria escapado a Platão e nem sequer ocorrido a Aristóteles.
Reitero: a mimesis é contagiosa em virtude de sua natureza antropológica. E é desagregadora porque seus efeitos não se limitam à passividade e neutralidade que em geral se atribuem à imitação.
Platão, pensa Girard, compreendeu o problema, mas recuou diante de suas consequências. Aristóteles, por isso mesmo, já pôde domesticar a mimesis, convertida em dispositivo geral, no qual os homens se comprazem.
Como entender a originalidade do pensamento girardiano nessa impressionante teia de diálogos que estruturam a própria filosofia ocidental?
Proponho que se aprofunde uma diferença conceitual sutil, mas simplesmente decisiva entre mimesis e imitação.
(Você já sabe: na próxima coluna retomo essa diferença.)