Economia da atenção e universo digital
A virulência do universo digital já se tornou parte intrínseca do caos nosso de cada dia. As redes sociais são os centros contemporâneos de maior violência simbólica, seja por meio de cancelamentos sucessivos, seja por meio de uma linguagem sempre mais vitimária e próxima aos pressupostos da teoria mimética, tal como desenvolvida pelo pensador francês René Girard, e que propõe a centralidade do mecanismo do bode expiatório na constituição da cultura.
(Um pouco de paciência: tratarei da teoria mimética na conclusão desta série.)
Em alguma medida, o fenômeno se relaciona à economia da atenção — palavra-valise do cenário presente. Ora, dado que nossa capacidade de assimilação de informação é necessariamente limitada, e que inversamente o volume de dados disponíveis é na prática infinito, a disputa pelo tempo dos usuários das mais variadas plataforma tornou-se propriamente feroz. Nessa autêntica selva selvaggia, e sem guia algum para orientar nas veredas mais estreitas, como se destacar de modo a não se perder na invisibilidade de mil e uma ofertas simultaneamente apresentadas e a todo o tempo em renovação ininterrupta?
Um passo atrás: seria ingênuo atribuir esse fenômeno à emergência da internet num dia a dia planetário de homogeneização quase absoluta de estilos de vida — no fundo, e cada vez mais, de estilos de sobrevivência. Em alguma medida, esse dilema esteve presente em outras constelações históricas, embora, claro está, em proporções muito diversas.
Nesse sentido, respeitando-se as especificidades de contextos diferentes, a invenção da tecnologia dos tipos móveis produziu um impacto até então inédito nos circuitos de comunicação. Uma vez impressos e não mais manuscritos, os textos começaram a viajar numa celeridade que causava vertigem na República das Letras. No século 18, momento em que pela primeira vez os livros chegaram às nascentes massas urbanas, graças a novas técnicas que baratearam muito o preço do objeto livro, teve início uma revolução na produção e sobretudo circulação do conhecimento. Trata-se de uma constante antropológica: uma tecnologia inovadora de comunicação tende a produzir um grande impacto na difusão do ideias e de sentimentos, justamente por meio da ampliação da capacidade de contágio propiciada pelo próprio meio.
Na passagem do século 18 para o 19, a economia da atenção já estava em voga: qual livro comprar, ou seja, qual romance ler diante do dilúvio de novos títulos? A crítica literária moderna surge também como uma resposta à angústia provocada pelo excesso de possibilidades: cabia ao crítico nem tanto indicar o que deveria ser lido quanto, e especialmente, sugerir o que se podia ignorar. O papel mediador da crítica, concebida tradicionalmente, relacionava-se com essa necessidade de orientação, engendrada por um poderoso novo meio de comunicação e o dilúvio de novos dados lançados no espaço público.
De volta ao presente: no universo digital, três características definem uma paisagem realmente inédita, cujo agonismo resultante é de difícil controle.
Vejamos.
Em primeiro lugar, retorno ao eixo de simultaneidade inaugurado pelas plataformas digitais, destacando seus efeitos ainda não estudados com profundidade. Uma oferta de conteúdo — seja um “produto” do marketing digital, direcionado para a venda, seja uma postagem de rede social, voltada para obter o capital simbólico das curtidas — é recebida e, em geral, imediatamente uma resposta é acionada, antes mesmo que se deixe passar o mínimo de tempo preciso para uma interpretação, mesmo que ligeira. O universo é mesmo digital, pois é como se coubesse à celeridade dos dedos no teclado a reação imediata ao fluxo ingovernável de estímulos. A tal ponto a engrenagem confia na simultaneidade dos polos de ação e reação, que, no limite, já não se pode distinguir com clareza quem é quem nesse universo de um eterno aqui e agora. A dinâmica expiatória da cultura do cancelamento inscreve-se nessa pura lógica dos afetos.
(Crise de indiferenciação: conceito-chave na teoria mimética girardiana; antessala da explosão de violência que só se resolve com o recurso arcaico ao mecanismo do bode expiatório.)
Em segundo lugar, tende a desaparecer a figura do tradicional mediador entre a miríade de conteúdo oferecido e o público, em tese incapaz de por si só selecionar o que merece sua atenção. Essa configuração simplesmente não faz o menor sentido na dinâmica das redes sociais. Isto é, o mediador do outro cede lugar ao curador de si mesmo. Aliás, a supressão de todas as mediações é o projeto político autoritário da extrema direita, que, aqui também encontra uma afinidade estrutural com a dinâmica do universo digital. Daí sua força surpreendente nas duas primeiras décadas do século 21.
Por fim, vale lembrar a lição de Karl Marx ao tratar de um traço definidor da produção capitalista, qual seja, se é indispensável considerar a diferença substantiva entre mudanças quantitativas e transformações qualitativas, em certas condições, contudo, é igualmente imperioso observar que, se o acréscimo da quantidade produzida superar um determinado nível, então, estaremos diante de um relevante câmbio na qualidade das relações de produção e inclusive de padrões de consumo. Eis exatamente o que tem ocorrido com a economia da atenção no mundo contemporâneo.
A violência extrema do universo digital, se não me equivoco, aí encontra seu combustível permanente, acendendo um rastilho de pólvora que num piscar de olhos se metamorfoseia num grande incêndio. De fato, o universo digital é um local privilegiado para o estudo do contágio mimético e de seus desdobramentos mais temíveis, qual seja, a crise de indiferenciação que se costuma resolver pelo recurso ao mito arcaico do bode expiatório.
(Em termos contemporâneos: a cultura do cancelamento.)
Extrema direita e violência digital
A reunião dos três elementos elencados acima estimulou uma resposta — certamente não a única, mas em boa medida a mais fácil.
Eis: dada a aguda, agudíssima, competição pelo tempo dos usuários das redes sociais, a linguagem do universo digital notabiliza-se pela busca do choque, numa visão neutra, ou, num olhar mais cético, pela escalada sem limites da violência simbólica.
De novo, o efeito, em si, não é inédito. A chamada imprensa marrom sempre soube lançar mão de manchetes sensacionalistas para atrair o público leitor. A TV aberta recorre a idêntico expediente sem constrangimento algum. O milagre da multiplicação dos reality shows seria incompreensível sem o apelo muitas vezes a situações francamente grotescas.
Porém… e não posso senão entoar o samba de uma nota só: a simultaneidade do circuito comunicativo do universo digital favoreceu níveis de violência cotidiana numa proporção desconhecida. Os efeitos, em boa medida, associam-se ao avanço transnacional da extrema direita.
Pensemos somente na circunstância dos infindáveis cancelamentos.
Não é verdade que sua virulência é indissociável da ação simultânea de um número sempre crescente de atores envolvidos no ato? Basta que um perfil anônimo inicie um linchamento virtual; se dois ou três perfis se juntarem à lapidação moral, pronto!, a bola de neve se converte numa fração de minutos num Himalaia de insultos, ameaças e toda sorte de arbitrariedade. O segredo é a viralização da ofensa, que, numa contaminação sem freios, empolga as redes até que se mude o alvo do cancelamento.
(Repare-se no vocabulário que naturalizamos: linchamento, viralização. É como se a violência cotidiana tivesse virado mera respiração artificial.)
Não há quem deixe de reparar nesse traço inquietante das redes sociais e como um bom Tartufo, que naturalmente nunca leu Molière, critica o que no entanto pratica. Na esfera da política, a extrema direita se notabiliza pelo uso programático da violência simbólica como forma de instrumentalização dessa lógica bélica da economia da atenção. Guerreiros do éter, cruzados do universo digital, tornaram a ágora virtual um campo minado em permanente explosão. Não nos enganemos: democracia alguma pode resistir ao par monetização da política e escalada da violência digital.
Por quê?
A resposta demanda um desvio no meu raciocínio — mas nunca um atalho.
(Talvez dois ou três desvios, para ser honesto.)
Coda
Sim: você já sabe muito bem aonde vou, você pode até duvidar, mas sigo na próxima coluna.