Midiosfera bolsonarista e dissonância cognitiva (7)

Se o universo digital reinventou a economia planetária por meio do e-commerce, a extrema direita está reinventando a política por meio de sua monetização
01/04/2022

Extrema direita e monetização da política
Adoto uma estratégia diversa desta vez: em lugar de abstratas elaborações teóricas, parto da prática definidora da monetização da política, um dos mais importantes recursos no avanço transacional da extrema direita. Trabalharei, portanto, com exemplos concretos.

Em 31 de janeiro de 2022, a revista Forbes publicou uma matéria reveladora: após a inegável derrota nas eleições em novembro de 2021, Donald Trump iniciou uma campanha de arrecadação de fundos para questionar a lisura do processo, ainda que ao fazê-lo tenha comprometido a imagem da democracia norte-americana em todo o mundo. Difícil imaginar a razão pela qual o homem que se dizia o mais poderoso do planeta necessitava de uma “modesta” campanha de arrecadação de fundos para ampliar o alcance de seu “protesto”.

Pois bem, talvez não seja assim tão oculto o motivo da iniciativa: em somente 8 semanas, o ex-presidente amealhou nada menos do que 255 milhões de dólares! Em valores aproximados, estamos falando de 1,3 bilhão de reais. E isso em escassos dois meses incompletos… Para que se tenha uma ideia do valor obtido, recorde-se que o orçamento da Fapesp para todo o ano de 2022 será de 1,85 bilhão de reais — um recorde para os padrões nacionais.

Há mais: essa pequena fortuna-relâmpago de 255 milhões de dólares foi obtida através de doações, isto é, quem as recebe e não promete serviço algum em troca, está isento de pagamento de imposto de renda. E não é tudo: Trump pode empregar os recursos de formas mais variadas e nem sempre diretamente relacionadas à contestação do resultado das eleições de novembro de 2020.[1] Melhor negócio, não pode haver! Se o universo digital reinventou a economia planetária por meio do ecommerce, a extrema direita está reinventando a política em todo o mundo por meio de sua monetização.

De fato, a instrumentalização do fanatismo político traduzido em monetização ideológica é um fator determinante no avanço transnacional da extrema direita. Em alguma medida, trata-se de uma adaptação, tão inesperada quanto sagaz, do modelo do televangelismo, que há décadas monetiza a fé alheia, e da técnica de vendas do, por assim dizer, “coachismo”, que, muito antes do universo digital, já movimentava bilhões de dólares com suas fórmulas milagrosas para obter de tudo e ainda mais um pouco. De igual modo, a extrema direita apropriou-se com agilidade e habilidade do business plan dos digital influencers, que no mundo todo acumulam fortunas por meio da manipulação do desejo dos outros nessa enorme roda gigante mimética — o universo digital.

Ora, a monetização da política por meio de instrumentos típicos do universo digital é a grande invenção da extrema direita transnacional e um dos fatores decisivos em seu triunfo. Por isso mesmo, a desmonetização de plataformas cujo conteúdo é prioritariamente político é uma exigência para que o modelo contemporâneo de democracia permaneça minimamente funcional.

Você deseja outros exemplos?

Pois não!

No dia 20 de agosto de 2021, Steve Bannon foi preso nos Estados Unidos. Estrategista de Donald Trump, mestre de Eduardo Bolsonaro em termos de política internacional, Bannon foi para o xilindró, entrou em cana. Por quê? Porque ele teria usado indevidamente recursos oriundos de outra campanha de arrecadação de fundos, “We Build the Wall”; campanha voltada para “convencer” o público norte-americano da necessidade de construir um muro, na verdade, uma muralha na longa fronteira entre Estados Unidos e México. Promessa irrealizada da campanha de Trump, o tema metamorfoseou-se numa oportunidade de ouro para manter a máquina da monetização em pleno funcionamento. Razoavelmente bem-sucedida, a campanha obteve aproximadamente 25 milhões de dólares. Contudo, levou Bannon à prisão porque ele teria usado os recursos para pagar despesas pessoais.[2]

(Você tem razão: Bannon foi preso por uma modalidade gringa de rachadinha…)

Crime federal, Bannon ainda hoje estaria vendo o sol nascer quadrado se Donald Trump não lhe tivesse concedido o “perdão presidencial” como um de seus últimos atos na Casa Branca.[3]

No Brasil de jair messias bolsonaro, a monetização da política gerou uma nova profissão: o MEI, vale dizer, o microempreendedor ideológico!

Não exagero!

Com quantas moedas se faz uma polis?
Vamos à prova dos nove: a verdade factual.

(Peço um pouco de paciência: trata-se de conceito fundamental de Hannah Arendt com o qual encerrarei esta série.)

Pare agora de ler este artigo e pesquise, no YouTube, o canal de uns três ou quatro bolsolavistas.

Pronto?

Eis alguns elementos que você encontrou em todos eles: a) apoio irrestrito às políticas do messias bolsonaro; b) ataques furiosos contra todos que a elas se opõem.

Acertei?

Azeitada a engrenagem ideológica, chega a vez do ecommerce: c) oferta de cursos; indispensáveis, claro está, para o êxito da “revolução conservadora”; d) uma “livraria” virtual, com títulos “obrigatórios” para a família brasileira “de bem”, a fim de “armar-se” para enfrentar a ofensiva da Escola de Frankfurt (t’esconjuro, pé de pato, mangalô, três vezes!) e seu esforço infatigável para a derrocada da civilização greco-romana, judaico-cristã.

E last but not least: e) o número de pix indefectível ou o link do apoia-se ou qualquer forma de enviar, ao portador, dinheiro bufunfa l’argent (comme il faut) bagarote caraminguás cacau dimdim (ah! Dindi!) papel pila pilim tutu arame (olha o vexame!) tusto cheta chavo troco cifra cascalho (viva Olavo!) gimbo vintém borós verba cifra (salve aquela família muito unida) bolada pecúnia massa pasta gaita mangos (ave Feliciano!)

(E se mandar o cartão de crédito, nunca se esqueça de revelar a senha.)

E nem mencionei as tantas inumeráveis infinitas criativas infindáveis vaquinhas para tudo e ainda algo mais pois a precisão é muita. Daí, vaquinhas tantas: a) para alugar carros de som para a manifestação intervenção militar já com bolsonaro no poder; b) para confeccionar faixas eu autorizo você a ser trouxa e me regalar com seu suado dinheiro contado; c) para financiar filme arrasador da esquerda que aparelhou a Igreja Católica; você viu o filme? eu não; e jacaré viu? viu não. e macunaíma viu? deu tempo não, virou estrela numa constelação; d) para apoiar programa de YouTube que trará a verdade e seu dinheiro libertará os apresentadores de perrengues manqueiras óbices desajustes financeiros; e) para financiar documentários pois nunca nunquinha da silva aceitaremos dinheiro púbico mas somente da liberdade de fóruns de empresários de milionários apoiadores de bolsonaro e, claro, de todos vocês que acreditam em nossa tarefa de destruir de vez por toda a eternidade a hegemonia cultural da esquerda; e daí, no meio do caminho, se ficarmos ricos, podres de, qual o problema? quem gosta de miséria é intelectual, não é mesmo — intelectual de esquerda, você sabe muito bem; e) para ser membro VIP do canal e receber o “Boletim” com as últimas novidades do século passado.

***

Você me acompanha, tenho certeza: a grande conquista do governo bolsonaro foi a democratização da rachadinha. Viver de expedientes, ganhar dinheiro “fácil”, apropriar-se do alheio como se próprio fora, dar mil e um golpes com o escudo de uma fachada ideológica: eis, numa síntese brutal, o verdadeiro significado do bolsonarismo.

O fenômeno, porém, é transnacional, o que torna tudo mais complexo e muito, mas muito mais perigoso.

E a violência digital?
Se não for um excesso de otimismo imaginar que algum leitor ainda me segue nesta longuíssima série, na próxima coluna tratarei da violência contagiante do universo digital.

(Estamos quase terminando — talvez.)

Notas

[1] Eis a matéria: https://www.forbes.com/sites/jemimamcevoy/2021/01/31/trump-raised-250-million-since-election-to-challenge-outcome-heres-where-most-of-the-money-will-actually-go/?sh=475c20ab8824.

[2] Ver aqui: https://www.cnnbrasil.com.br/internacional/ex-assessor-de-trumpeve-bannon-e-preso-por-fraude-e-lavagem-de-dinheiro/

[3] Ver aqui: https://www.theguardian.com/us-news/2021/jan/20/donald-trump-pardons-steve-bannon-amid-last-acts-of-presidency-report

João Cezar de Castro Rocha

É professor de Literatura Comparada da UERJ. Autor de Exercícios críticos: Leituras do contemporâneo e Crítica literária: em busca do tempo perdido?, entre outros.

Rascunho