Temporalidade digital
Para entender o vínculo estrutural entre universo digital e avanço transnacional da extrema direita é preciso dar um passo atrás, a fim de ponderar a novidade mais relevante trazida pelo universo digital e, sobretudo, pelas redes sociais. Essa novidade se refere menos à quantidade de informação tornada disponível do que à simultaneidade de três eixos que compõem as mensagens midiáticas. Ora, quantidade de informação é, por definição, relativa a um contexto determinado e depende diretamente da densidade do circuito comunicativo de uma dada época histórica. Não se trata, assim, de uma novidade, digamos, “absoluta”.
Contudo, a simultaneidade de três eixos é realmente inédita e tem produzido um efeito devastador tanto no modelo da democracia representativa quanto na paisagem cultural do planeta.
(Não exagero.)
Historicamente, os três eixos encontravam-se, necessariamente, em tempos distintos, e essa distinção alimentava a cadeia narrativa, cujo colapso foi provocado pelo advento da tecnologia digital.
Confuso?
Avanço passo a passo.
Imagine comigo uma típica notícia jornalística: da ocorrência do fato à transmissão pelo periódico, uma primeira defasagem temporal decisiva se impunha: apuração do acontecimento, escrita do texto, sua revisão, edição e, finalmente, a publicação e posterior leituras. Defasagem agravada pelo tempo próprio da leitura do jornal: no dia seguinte à ocorrência, em horas diversas, por uma miríade de leitores. O ato mais elementar de narrar, no sentido benjaminiano, exige a condensação de vivências pela passagem do tempo. Caso contrário, experiência comum alguma poderia ser plasmada: como imaginar um narrador eternamente refém do instantâneo? Ou da notícia da última hora, que, por ser sempre a última hora, torna-se hora nenhuma!
A própria hermenêutica como disciplina demanda a distância temporal entre o presente do intérprete e o tempo singular do artefato a ser estudado. Se estivessem encapsulados no mesmo presente eterno e, por isso, eternamente órfão de referências, como supor o ato interpretativo? O universo digital e as redes sociais inauguraram uma inédita simultaneidade de três eixos: a transmissão do evento ocorre no exato instante de sua ocorrência, que, por sua vez, também coincide com sua recepção. A verticalidade radical dessa experiência tende a substituir a interpretação pela resposta emocional no calor da hora. Em boa medida, a agressividade ostensiva das redes sociais relaciona-se à simultaneidade, que, como não poderia deixar de ser, convida a uma resposta igualmente simultânea, isto é, imediata, à recepção. Nesse círculo infernal, cuja marca d’água é a indistinção entre tempos e gestos, o caos é engendrado sem pausa.
(Pausa: tudo o que precisamos!)
Numa arqueologia dessa circunstância, estudarei num futuro livro dois acontecimentos-chave.
Em primeiro lugar, o princípio da Guerra do Golfo, que foi anunciada com antecedência[1]: se Saddam Hussein não aceitasse o ultimato para deixar o Kuwait até a meia-noite do dia 15 de janeiro de 1991, um devastador ataque aéreo seria desferido. Ultimatos similares já tinham ocorrido inúmeras vezes ao longo da história, claro está; no entanto, agora, um fato inédito teve lugar: o início dos bombardeios foi transmitido ao vivo pela CNN![2] E sua cobertura durava as 24 horas do dia — exatamente como o malogrado personagem Funes, el memorioso, do conto homônimo de Jorge Luis Borges, que, porque não podia esquecer coisa alguma, também não pôde mais pensar. A análise dos vídeos da cobertura da CNN transmite com perfeição a atmosfera de excitação e de caos que prefiguraram o universo distópico das redes sociais.[3]
O segundo evento epocal nos conduz ao 11 de setembro de 2001. Mais uma vez, a CNN, entre outras redes de televisão, transmitiu ao vivo o “acidente” de um avião que se chocou com a primeira das Torres Gêmeas em Nova York. Por longos, eternos minutos, os comentaristas tentavam entender o que se passara, pois parecia impossível imaginar as razões do desastre. Como um piloto poderia desorientar-se a tal ponto, de modo a colidir com um arranha-céu no centro urbano? Teria desmaiado em pleno voo ou uma falha mecânica teria deixado o avião à deriva? Eis que, enquanto um curto-circuito atravessa a todos sem exceção (comentaristas e espectadores), uma segunda aeronave se choca de modo claramente proposital contra a segunda torre. Vale a pena assistir ao vídeo com atenção: poucas vezes revelou-se com tanta eloquência o colapso hermenêutico produzido pela simultaneidade dos eixos fato–transmissão–recepção.[4] Martin Amis tudo disse numa frase cortante: “Foi o surgimento do segundo avião (…): esse foi o momento decisivo”.[5] Somente então a hipótese de um atentado terrorista foi levada a sério pelos comentaristas. O espaço de tempo transcorrido entre o primeiro e o segundo avião inaugurou de fato o século 21.
(Em alguma medida, seguimos enredados nesse espaço de tempo.)
Num cenário presenteísta, ou atualista, na teorização inovadora de Valdei Araújo e Matias Pereira,[6] Manuel Bandeira jamais teria tido oportunidade de elaborar uma simples nota, lida talvez com olhos descuidados, em versos icônicos da literatura brasileira, Poema tirado de uma notícia de jornal:
João Gostoso era carregador de feira-livre e morava no morro
da Babilônia num barracão sem número
Uma noite ele chegou no bar Vinte de Novembro
Bebeu
Cantou
Dançou
Depois se atirou na Lagoa Rodrigo de Freitas e morreu afogado.
Repare como o poema potencializa as omissões da própria notícia — a teoria machadiana dos livros omissos vem à mente. O barracão no morro da Babilônia era sem número, assim como sua morte permanece sem esclarecimento — sobretudo sem perguntas. Um “acidente” provocado pela embriaguez ou, pelo contrário, a embriaguez não deixou de ser um anúncio do “suicídio”? Em outras palavras, o leitor do poema é levado a ponderar a notícia com uma gravidade que dificilmente teria sido a do apressado leitor do jornal.
Na distância entre os dois atos de leitura, reside a potência da leitura literária, pois ela inventa uma pausa que finalmente pode interromper o fluxo-vertigem de uma simultaneidade que nos torna cada vez mais prisioneiros de limites desumanizadores: os 280 caracteres de um tuíte — e que, no início da plataforma, eram exíguos 140.[7] Tal pausa reintroduz no circuito comunicativo a defasagem temporal entre ato, transmissão e interpretação. Não nos enganemos: sem essa defasagem, a desumanização é o próximo passo. Seremos todos algoritmos capengas, com capacidade limitada, limitadíssima, de processamentos dos dados, que, no entanto, serão sempre mais céleres e exigentes.
Extrema direita
Você tem razão: praticamente nada falei da extrema direita.
Da teoria à prática: fiz essa pausa, mas na próxima coluna detalho a relação entre temporalidade digital e o avanço transnacional do extremismo político.
Notas
[1] O discurso do presidente George W. H. Bush, “President George W. H. Bush announces the Persian Gulf War, 16 de janeiro de 1991”, aqui se encontra: https://www.youtube.com/watch?v=KJ6qpFpIFkY.
[2] Um vídeo vale mais do que mil palavras? Veja este, “CNN Gulf War Begins, January 16, 1991”: https://www.youtube.com/watch?v=_kwfYRRCmNw&t=21s.
[3] Veja-se, em especial, este vídeo: https://www.youtube.com/watch?v=BskrpzvVE3Q.
[4] Eis o vídeo, “Second Plan hits South Tower”: https://www.youtube.com/watch?v=sBciZFE8lAw.
[5] Martin Amis. “The Second Plane”. In: The Second Plane. London: Jonathan Cape, 2008, p. 3.
[6] Valdei Araujo e Mateus Pereira. Atualismo 1.0. Como a ideia de atualização mudou o século XXI. Ouro Preto: SBTHH, 2018.
[7] E, acredite se quiser, os “puristas” reclamaram muito quando essa “concessão” foi feita: “Twitter libera postagens de até 280 caracteres para todos os usuários”, 7 de novembro de 2017. Ver a matéria no link: https://www1.folha.uol.com.br/tec/2017/11/1933591-twitter-libera-postagens-de-ate-280-caracteres-para-todos-os-usuarios.shtml.