Midiosfera bolsonarista e dissonância cognitiva (3)

A teoria elaborada por Leon Festinger é uma chave para decifrar fenômenos coletivos como o trumpismo e o bolsonarismo — com suas teorias conspiratórias
A cultura é um dos alvos preferidos do presidente Bolsonaro.
01/12/2021

Dissonância cognitiva e harmonia
Nas duas colunas anteriores esbocei uma nova hipótese: a atual circunstância brasileira pode ser mais bem compreendida por meio da teoria da dissonância cognitiva, tal como desenvolvida pelo psicólogo social Leon Festinger. Tal hipótese, contudo, apresenta um problema e devo ser o primeiro a reconhecê-lo.

Vamos lá: hora de dar alguns passos atrás.

(E talvez nenhum adiante.)

Festinger foi um dos pioneiros da chamada “cognitive revolution”, movimento que, na área da Psicologia, especialmente nos Estados Unidos, terminou por deslocar o behaviorismo do centro da cena. Em lugar de confiar em respostas condicionadas e no influxo determinante do meio externo, a revolução cognitiva investiu na análise de processos mentais, almejando decodificar seu impacto nas relações intersubjetivas; em consequência, sua centralidade na formação social como um todo.

Um tema em particular dominou as pesquisas iniciais associadas à revolução cognitiva: a busca de coerência entre crenças e comportamentos, o imperativo do equilíbrio entre intenção e gesto. Vale dizer, apostava-se numa tendência pretensamente “natural” que privilegiaria o acordo entre as palavras e as coisas, de modo que houvesse uma congruência crescente entre as opiniões que defendemos e as atitudes que tomamos na esfera social.

Isto é, no fundo, a teoria proposta por Festinger procurava compreender os meios empregados para superar a dissonância cognitiva, pois o psicólogo partia de um princípio seguro, qual seja, a busca da consonância perdida seria o motor de todo processo cognitivo e, em consequência, da própria subjetividade.

Nas palavras de Festinger:

O núcleo da teoria da dissonância, tal como definimos, é simples. Propõe-se:

1. Podem existir relações dissonantes ou “incongruentes” entre elementos cognitivos.
2. A existência de dissonância produz pressão para reduzi-la, assim como para evitar o seu aumento.
3 . Manifestações de operação dessas pressões incluem mudanças de comportamento, mudanças de cognição, além de exposição relutante a nova informação e novas opiniões.[1]

Não é difícil entender a relevância desses pressupostos; ora, em sua completa ausência, sociedade alguma seria possível: a anomia seria a paradoxal regra de um grupo social em permanente ebulição autodestruidora.

(A cada esquina, um apocalipse à espreita.)

De fato, a quase totalidade do ensaio é dedicada ao estudo minucioso de formas de redução de dissonância cognitiva nas mais diversas instâncias da vida social, desde situações prosaicas a circunstâncias complexas. Em exemplo que se tornou célebre, Festinger evocou o caso do fumante que “aprendeu que o tabaco é prejudicial à saúde”. Como ele reage? Preste atenção na segunda alternativa (ela é decisiva para meu argumento, como veremos na próxima coluna):

1. A pessoa pode simplesmente mudar sua cognição acerca de seu comportamento mudando suas ações, isto é, pode parar de fumar. Se assim o fizer, então sua cognição de sua atitude será consonante com seu conhecimento sobre os danos causados à saúde pelo fumo. 

2. A pessoa pode mudar seu “conhecimento” acerca dos efeitos do tabaco. Dizê-lo assim parece uma forma peculiar de expressão, mas expressa muito bem o que está em jogo. A pessoa pode muito bem terminar por acreditar que fumar não possui efeito maléfico algum, ou a pessoa pode adquirir tanto “conhecimento” que afirma os efeitos positivos do tabaco que os aspectos negativos se tornam negligenciáveis. Se a pessoa conseguir mudar seu conhecimento em qualquer dessas duas direções, ela terá reduzido, ou mesmo eliminado, a dissonância entre o que ela faz e o que ela sabe .

Análises similares definem o método de Festinger e, ao mesmo tempo, explicam o alcance de sua obra. A teoria da dissonância cognitiva chegou inclusive à cultura popular e o conceito é empregado em inúmeras disciplinas acadêmicas. Em boa medida, a imersão da teoria nas ações do dia a dia operou efeito próximo ao obtido por Sigmund Freud ao valorizar a interpretação dos sonhos e a psicopatologia da vida cotidiana, numa estratégia certeira que permitia que os céticos “vissem”, se não o propriamente invisível, o inconsciente, seus efeitos mais do que palpáveis no cotidiano; afinal, sonhos e atos falhos fazem parte da vida de cada um de nós. Noutras palavras, nos casos da psicanálise e da dissonância cognitiva, lidamos com teorias cuja concretude, por assim dizer, salta aos olhos. Por isso mesmo, o método de Festinger foi fundamental para o êxito da revolução cognitiva, pois sua abordagem transformou o mundo num laboratório em potencial. Na conclusão do ensaio, o ponto foi assinalado: “Nos vários capítulos deste livro, apresentei dados de uma grande gama de contextos, relevantes para a teoria da dissonância”.

Portanto, a hipótese que esboço nesta série parece incoerente com a teoria de Leon Festinger. Dito de forma direita: como supor a dissonância cognitiva Brasil, se o gesto característico da cognição humana seria antes o de produzir consonância? Como sustentar que a midiosfera extremista tende a gerar realidades paralelas se, pelo contrário, a tentativa de conciliar crenças e comportamentos implica respeitar o princípio de realidade? Isto é, a teoria de Festinger não desautorizaria minha reflexão, em lugar de favorecê-la?

Posso ser ainda mais claro: em seu livro, o psicólogo social estuda formas diversas e plurais de redução da dissonância cognitiva. Aqui, redução quer dizer superação, a fim de retornar à situação teoricamente ideal de consonância cognitiva. Nesse contexto, como posso propor a existência de uma dissonância cognitiva Brasil? O sintagma parece ser insustentável. Não estamos diante de mero jogo de palavras? A ironia é saborosa: involuntariamente, eu não estaria fornecendo um exemplo da dissonância que pretendo identificar?

Dissonância cognitiva: forma de vida?
A pergunta é justa; na verdade, obrigatória.

Aposto minhas fichas numa lacuna que se anuncia no final de A theory of cognitive dissonance.

Passo a passo.
Abra comigo o último capítulo, cujo título anuncia a passagem do nível individual para o coletivo, justamente o que me preocupa no atual caos cognitivo brasileiro: O papel do apoio social: dados acerca de fenômenos de massa. Pesquisador com notável faro para as incoerências de sua própria teoria, Festinger acrescentou uma ressalva reveladora:

Teoricamente, não deveria haver uma diferença significativa se a dissonância for largamente difundida, resultando num fenômeno de massa envolvendo um grande número de pessoas, ou se a dissonância é compartilhada por um número relativamente pequeno de adeptos — assinalando que, neste último caso, o apoio social pode ser facilmente obtido.

O livro foi publicado em 1957 e segue sendo um ensaio instigante e inspirador — algo que não se pode dizer com frequência. No entanto, dois itens tratados no último capítulo devem ser radicalmente repensados à luz da revolução digital. Refiro-me às seções Mantendo crenças inválidas e Proselitismo de massa. Minha leitura maliciosa da teoria da dissonância cognitiva depende do aprofundamento do elo entre as duas seções. Vale dizer, as crenças são consideradas inválidas porque entram em contradição com o mais elementar princípio de realidade. E se ainda assim são mantidas, isso ocorre por mecanismos de persuasão que alcançaram um alcance inédito, mesmo inimaginável na década de 1950, com o advento do universo digital e especialmente das redes sociais. O avanço transnacional da extrema direita não é compreensível sem a consideração desse fator.

De fato, uma conclusão marginal no ensaio de 1957, nas condições contemporâneas é uma chave decisiva para decifrar fenômenos coletivos de dissonância cognitiva, tais como o trumpismo e o bolsonarismo, e suas incontáveis teorias conspiratórias:

É evidente que, por um tempo considerável, essas pessoas, apoiando-se mutuamente, foram capazes de negar a validade de evidências contrárias à crença que precisavam manter.

 

Numa frase, o retrato acabado da dissonância cognitiva Brasil. A guerra cultural, nesse registro, deixa de ser acalorada disputa de narrativas, com a finalidade de obter ganho político imediato, para converter-se em forma de vida, numa estrutura muito próximo à formação de seitas.

Exagero?

Espere as próximas colunas.

Notas

[1] Leon Festinger. A Theory of Cognitive Dissonance. Stanford: Stanford University Press, 1962, p. 31. Nas próximas citações, mencionarei apenas o número da página.

João Cezar de Castro Rocha

É professor de Literatura Comparada da UERJ. Autor de Exercícios críticos: Leituras do contemporâneo e Crítica literária: em busca do tempo perdido?, entre outros.

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