Midiosfera bolsonarista e dissonância cognitiva (12)

O bode expiatório é um membro do grupo, mas deixa de sê-lo na hora em que é assinalado como culpado da desordem
01/10/2022

Interdisciplinaridade como método
Vamos dar um passo atrás?

Isto é, esbocemos, panoramicamente, a trajetória de René Girard. Seu princípio motor teve como base a interdisciplinaridade. Seu primeiro livro, Mentira romântica e verdade romanesca (1961), é um brilhante ensaio de crítica literária e de literatura comparada. Em seu segundo título, A violência e o sagrado (1972), o “crítico literário” reinventou-se, ampliando suas áreas de interesse até abarcar a antropologia, os estudos da religião e a análise do mito.

(Em sentido rigoroso, o segundo livro de René Girard é Dostoiévski: Do duplo à unidade (trad. Roberto Mallet. São Paulo, É Realizações, 2011); ensaio escrito especialmente para a coleção La Recherche de l’Absolu, da editora Plon, e publicado em 1963, com o título Dostoïevski: du double à lunité. No entanto, o próprio pensador considerava A violência e o sagrado seu segundo livro — digamos, sua segunda grande obra.)

Por fim, com a publicação de Coisas ocultas desde a fundação do mundo (1978), como sugere a alusão ao Evangelho de São Mateus, o “crítico literário-antropólogo” voltou a forjar uma nova identidade por meio de uma apropriação muito particular das Escrituras. A partir de então, a preocupação teológica e antropológica constituiu o eixo de sua teoria. O cruzamento das duas disciplinas não só levou à elaboração de uma antropologia propriamente mimética, como também favoreceu o esboço de uma teologia antropologicamente orientada. Mencione-se ainda uma abordagem que encontra na Bíblia a matriz mesma da noção de intertextualidade.

Em suas palavras:

A antropologia mimética dedica-se tanto ao reconhecimento da natureza mimética do desejo quanto ao desdobrar das consequências sociais desse conhecimento, à revelação da inocência da vítima e à compreensão de que a Bíblia e os Evangelhos fizeram isso por nós antes.[1]

Nos dois casos, a força da obra girardiana reside na descoberta de relações inesperadas entre textos das mais distintas tradições. A formação de paleógrafo e de crítico literário deixou marcas permanentes em sua reflexão. Assim, mesmo quando suas preocupações intelectuais conheceram novos rumos, a leitura detetivesca de textos continuou a ser um dos traços mais originais de sua metodologia. Recordemos como o próprio Girard se refere a seu livro Eu via satanás cair como um relâmpago: “creio que seria preciso abordar o livro como a um thriller”.[2]

No meu trabalho, proponho um novo conceito para o seu arsenal. Refiro-me ao conceito de “interdividualidade coletiva”, cujas consequências importam, e muito, para a compreensão do universo digital e a onipresença do mecanismo do bode expiatório nos rituais cotidianos das redes sociais. A transposição do caráter mimético do desejo do plano interdividual ao coletivo — ou, se pensarmos na mentalidade oitocentista, do universo do interdivíduo ao domínio do Estado-nação — foi obsessivamente tematizada pelos mais distintos pensadores latino-americanos dos séculos 19 e 20. “Interdividualidade” é o único neologismo proposto pela teoria mimética. Ele sublinha o caráter social da determinação da interdividualidade, no lugar da individualidade.

Se não me equivoco, o conceito de interdividualidade coletiva permite atar as pontas do pensamento girardiano, estabelecendo um fio de continuidade complexo, porém nítido, entre Mentira romântica e verdade romanesca (1961) e Rematar Clausewitz (2007). Se, na primeira obra, a dimensão do desejo mimético provocava conflitos no nível interdividual, no segundo título, a escalada da violência, ocasionada pelo contágio transnacional da rivalidade mimética, envolveu duas grandes potências econômicas e militares: França e Alemanha. Essa rivalidade, diz Girard, levou o mundo ao predomínio quase exclusivo da mediação interna — momento histórico que define o mundo contemporâneo e cujo ponto máximo de tensão diz respeito exatamente ao mundo das redes sociais.

Interdividualidade coletiva e violência
Uma leitura mimética da violência contemporânea não oferecerá “soluções” para o problema, cuja complexidade desautoriza a busca de panaceias ou a promoção de falsas guerras. Estas somente suscitam a escalada da violência, como se vivêssemos enredados numa ordem que já não sabe como legitimar-se, a não ser pela promessa de controlar a violência desencadeada pelo próprio sistema. Uma análise que leve em conta os pressupostos da teoria mimética ilumina novos ângulos, propiciando formas de enfrentar o problema sem meias-tintas.

(Não é outra a tarefa da teoria.)

A interdividualidade evidencia o caráter coletivo do desejo. Se, em princípio, a rivalidade afeta o sujeito ou seu modelo, isto é, se a relação limita-se a um círculo restrito, no segundo momento essas relações começam a disseminar-se, porque o desejo mimético é, em si mesmo, mimético — e aqui se impõe a redundância, numa variação do feedback positivo estudado por Gregory Bateson. A violência termina por dominar o grupo, já que, por contágio, o sistema reforça o mimetismo inicial.

Recorde-se o que vimos nesta interminável série de artigos: em virtude da proliferação de rivalidades e conflitos, a escalada da violência chega a ameaçar a sociedade de desintegração. Imaginemos que tais conflitos e rivalidades não conheçam ainda formas externas de controle. Na reconstrução girardiana, tal era a situação dos primeiros grupos de hominídeos. Portanto, o grupo social podia desagregar-se em meio à multiplicação de conflitos localizados. Os grupos de hominídeos que superaram a crise mimética, constituindo os primeiros núcleos de organização cultural, encontraram um mecanismo matriz: o mecanismo do bode expiatório. No sistema girardiano, essa hipótese proporcionou uma compreensão inovadora da emergência da cultura. Girard supõe que, como resposta possível à escalada da violência, teria surgido um mecanismo cuja descrição constitui a segunda intuição básica, apresentada em La violence et le sacré. A relação com o primeiro livro foi explicitada pelo autor: “Meu primeiro livro era sobre o desejo mimético e a rivalidade na literatura moderna; o segundo era a extensão das teses sobre o desejo mimético para a religião arcaica”.[3]

É preciso sublinhar o paradoxo dessa circunstância: trata-se de mecanismo interno que ao mesmo tempo necessita criar uma exterioridade em relação ao próprio grupo. O bode expiatório é um membro do grupo, mas deixa de sê-lo na hora em que é assinalado como culpado da desordem. Converte-se assim numa espécie de elemento externo, favorecendo o retorno da coesão do grupo, que volta a reconhecer-se como uma unidade, em oposição ao futuro bode expiatório, figura mesma da exterioridade que se havia perdido.

Um passo atrás para melhor entender o fenômeno.

Jean Robert descreveu o processo com economia:

Em toda rivalidade, pode haver um ponto sem volta, a partir do qual o objeto da disputa desaparece, ainda que a disputa continue. De agora em diante, cada adversário ficará tão fascinado com o outro que esquecerá seu interesse próprio. […] O motivo já não é obter o objeto inicialmente desejado por ambos, mas impedir que o outro o obtenha e, ademais de seu desaparecimento, infligir-lhe danos.[4]

O objeto não tem mais importância, uma vez que a rivalidade, alimentada por um feedback positivo, torna-se autônoma, produzindo uma sucessão de duplos, isto é, sujeito e modelo que, na ausência de objeto, tornam-se especulares, numa crise de indiferenciação. Girard foi claro: “A crise sacrificial, ou seja, a perda do sacrifício, é a perda da diferença entre a violência impura e a violência purificadora. […] A crise sacrificial deve ser definida como uma crise das diferenças, ou seja, da ordem cultural em seu conjunto”.[5] Para interromper a avalanche de mimetismo é preciso, digamos, uma espécie de dique, ou, nos termos estudados por Bateson, impõe-se um feedback negativo, que, ao inserir uma informação contrária no circuito, opõe um obstáculo decisivo à explosão de rivalidades.

Numa palavra: falta a mediação de um objeto que discipline a mímesis, possibilitando o restabelecimento de diferenciações entre sujeito e modelo.

Esse objeto, o objeto primordial, é o corpo da vítima sacrificial.

Reitero (pois o ponto é central à teoria mimética): o mecanismo do bode expiatório promove o retorno do objeto na figura do corpo sacrificado.

Eis a intuição forte de Girard: a emergência da cultura demandou o desenvolvimento de formas miméticas de contenção da violência mimeticamente engendrada.

Pronto: agora sim: na próxima coluna trato, sem mais digressões, do universo digital e de seu surpreendente resgate do mecanismo do bode expiatório.

Notas

[1] René Girard, João Cezar de Castro Rocha, Pierpaolo Antonello. Evolução e Conversão. Diálogos sobre a origem da cultura. São Paulo: É Realizações, 2011, p. 213.

[2] René Girard, Aquele por Quem o Escândalo Vem. Trad. Carlos Nougué. São Paulo, É Realizações, 2011, p. 102. Mais à frente, definiu da seguinte maneira o conjunto da teoria mimética: “um romance policial”. Ibidem, p. 175.

[3] René Girard et al., Evolução e Conversão, op. cit., p. 69.

[4] Jean Robert, “Reciprocidad Negativa, Ausencia del Bien e Institucionalización del Pecado”. In: Sonia Halévy, Pierre Bourbaki e Jean Robert, Jean-Pierre Dupuy: La Crisis Económica, Su Arqueología, Constelaciones y Pronóstico. Chiapas, Universidad de la Tierra, 2012, p. 36.

[5] René Girard, A Violência e o Sagrado, op. cit., p. 67 (grifos do autor).

João Cezar de Castro Rocha

É professor de Literatura Comparada da UERJ. Autor de Exercícios críticos: Leituras do contemporâneo e Crítica literária: em busca do tempo perdido?, entre outros.

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