Midiosfera bolsonarista e dissonância cognitiva (10)

As diferenças entre mimetismo e camuflagem como formas de sobreviver em um ambiente hostil
O pensador francês René Girard
01/07/2022

Mímesis e sobrevivência
René Girard, hipotético leitor de Guimarães Rosa, reescreveria Aristóteles com a dicção de um Riobaldo: “o mimetismo é congênito no vivente e os viventes sobrevivem com o mimetismo”.

Os exemplos são tão numerosos quanto excepcionais.

A orquídea Ophrys apifera desenvolveu um complexo sistema mimético, a fim de aumentar exponencialmente suas probabilidades de reprodução, intimamente associadas à difusão de seu pólen.

A solução encontrada deslumbra: a orquídea assume a forma e o colorido de uma abelha fêmea. Além disso, exala o odor que parece ser o da fêmea, visando a atrair o zangão.

Pronto: todos os sinais emitidos, o zangão procura fecundar a “abelha-orquídea” e, ao fazê-lo, terá seu corpo delineado por grãos de pólen que serão dispersos pelo zangão insciente de sua tarefa de reprodutor involuntário da Ophrys apifera.

Nem sempre, contudo, o mimetismo vegetal se reveste de uma atmosfera lírica. Penso no caso das droseras, plantas carnívoras, que se espalham por todos os continentes. São também conhecidas pelo encorajador nome de “orvalho do sol”, muito embora o motivo não seja exatamente solar.

(Pelo menos não para suas vítimas.)

Eis: as droseras possuem caules curtos e suas folhas produzem uma substância que mimetiza o orvalho. Insetos são atraídos pela promessa para o interior de seu caule somente para descobrir que, na verdade, o “orvalho” é a mucilagem, substância pegajosa que os aprisiona e quanto mais se debatem, mais enredados se encontrarão. Na sequência, imobilizados, os insetos são lentamente digeridos pela planta.

Muitas vezes o mimetismo propicia um sofisticado mecanismo de defesa por meio da “invisibilidade”, isto é, através do espelhamento de determinado ambiente, a fim de passar despercebido de possíveis predadores — e sempre os há.

(E muitos. Todo o tempo.)

Em casos similares, não se trata tecnicamente de camuflagem porque, aqui, a própria forma alheia é mimetizada, em lugar da adaptação das próprias características ao meio ambiente. É o caso das plantas do gênero lithops, nativas do sul da África, e conhecidas como “pedras vivas”, pois conseguem misturar-se com seu entorno por meio da mímesis de pedras e rochas — também por isso chamadas de “rochas vivas” ou “plantas de pedra”. Desse modo, protegem-se ao adquirir traços de outros seres.

Entre os insetos, as instâncias são infinitas e muito mais conhecidas do que o mimetismo vegetal.

A aranha do tipo Aphantochilus rogersi mimetiza formigas do gênero Cephalotes, sua presa mais comum. Ver uma imagem dessa aranha revela o alcance do mimetismo em seus menores detalhes: sua semelhança com a formiga é perfeita. O resultado é devastador: sem se darem conta da presença do predador, as formigas só podem se defender quando já é muito tarde.

Propriamente proteico é o incrível polvo mimético, assim conhecido pela sua capacidade inigualável de mimetizar o comportamento e a forma dos animais que pretende acatar e dos quais precisa se defender. Acredite se quiser, mas o Thaumoctopus mimicus mimetiza a aparência da serpente marinha, da arraia, do linguado, do caranguejo e de mais uma dezena de animais marinhos. De novo, o efeito é devastador — para as presas, bem entendido.

Nesses exemplos, a mímesis favorece formas de sobrevivência num meio permanentemente hostil, seja para aumentar as chances de reprodução da espécie, seja para elaborar mecanismos de defesa, ou, pelo contrário, para aprimorar estratégias de predação.

Não importa: se exitosa a operação, a sobrevivência é o resultado desse tipo de mímesis.

Como avaliar os efeitos da mímesis em grupos de animais vertebrados, especialmente entre primatas evoluídos?

Pergunta-chave, cuja resposta permite diferenciar mímesis e imitação — passo indispensável de nossa hipótese.

Mímesis e violência
Em todos os exemplos anteriores há um elemento em comum; na verdade, o fundamento da teoria mimética, tal como proposta por René Girard; a mímesis exige a presença constitutiva do outro, cujos traços devem ser propriamente mimetizados, numa relação de proximidade e distância característica da constelação paradoxal do pensamento girardiano.

Em outras palavras, só há operação mimética se o outro ocupar uma posição de centralidade, seja no reino vegetal, seja no mundo dos animais invertebrados. Não importa: sem assumir, em alguma medida, a forma ou o comportamento alheios, a operação mimética se inviabiliza. A alteridade, portanto, é o combustível que põe o seu movimento em circulação.

Esse entendimento mais preciso do fenômeno permite estabelecer uma distinção nítida entre mimetismo e camuflagem, pois esta apenas demanda a adaptação da própria forma ao ambiente externo, de modo a dissimular sua presença. Em lugar de modificação estrutural, ocorre o ajuste engenhoso a um entorno determinado. Assim, se o esforço necessário para a camuflagem é consideravelmente menor, o efeito qualitativo obtido é também muito reduzido, já que o vivente que depende desse procedimento tem necessariamente seu raio de ação limitado a regiões que favoreçam a dissimulação. Naturalmente, esse constrangimento territorial diminui as chances de sobrevivência, ou, no mínimo, especializa perigosamente as ações de ataque e de defesa.

(Como não pensar na antropologia filosófica de Arnold Gehlen e sua fascinante hipótese: a cultura humana é o resultado do desafio imposto pela inespecificidade do homo sapiens enquanto animal. O caráter gregário e simbólico seria um modo de compensar aquela precariedade.)

Já a operação mimética, embora demande uma autêntica transformação numa alteridade qualquer que seja vantajosa em termos de seleção natural, exigência rigorosa e que só se cumpre mediante um intrincado processo de adoção do alheio como forma ideal de autopreservação, a mímesis autoriza, por isso mesmo, uma ampliação real de horizontes que se opõe à especialização definidora da camuflagem.

(Como não pensar na antropologia literária de Wolfgang Iser e sua fascinante hipótese: a literatura corresponde à necessidade humana de ficção sobretudo porque se trata de um discurso inespecífico, sem função recorrente, capaz de plasmar mundos os mais diversos e inclusive contraditórios.)

Em animais vertebrados, a mímesis tende a produzir algo além de mera sobrevivência: o processo mimético possui uma dinâmica particular, cuja descrição equivale, no pensamento girardiano, a uma inovadora reconstrução das origens da cultura.

(Nada menos.)

Konrad Lorenz mencionou uma situação de grande relevância para essa reflexão. Ao estudar o comportamento de gansos, o fundador da etologia observou a emergência dum padrão: quando dois gansos se encontram próximos e demonstram grande hostilidade recíproca, a violência entre eles é muitas vezes redirecionada contra um terceiro membro do grupo, ou mesmo, o que é ainda mais surpreendente, contra um objeto inanimado.

O padrão deve ser anotado: a violência interna a um grupo pode ser contida de duas maneiras: de um lado, pela canalização da violência contra um terceiro membro; de outro lado, pela concentração de energia contra um elemento externo. Em ambas as direções, o que já se percebe é a estrutura elementar do mecanismo do bode expiatório; segundo René Girard, o fenômeno que se encontra na gênese das instituições: o assassinato fundador.

Na escala evolutiva, de acordo com os estudos mais recentes, quanto mais gregário o conjunto de animais vertebrados, ou seja, quanto mais numeroso o grupo, maior a tendência de a operação mimética resultar em violência intraespecífica.

Outra pergunta-chave vem à mente; desta vez, um questionamento tão simples quanto radical: por quê?

(Nem preciso dizer: sigo na próxima coluna.)

João Cezar de Castro Rocha

É professor de Literatura Comparada da UERJ. Autor de Exercícios críticos: Leituras do contemporâneo e Crítica literária: em busca do tempo perdido?, entre outros.

Rascunho