Midiosfera bolsonarista e dissonância cognitiva (1)

Como bolsonaristas se articulam em um circuito de desinformação, com base na fabricação incessante de notícias falsas e de teorias conspiratórias
Lives de Bolsonaro são um palco para ataques e criação de “fatos”
01/08/2021

A nação: a finitude do corpus
Em famosa palestra realizada em 1882, Qu’est-ce qu’une nation?, Ernst Renan inovou no entendimento do conceito de nação ao reconhecer sua surpreendente fragilidade. Afinal, ela seria o resultado de inesperado escrutínio:

Uma nação é pois uma grande solidariedade, constituída pelo sentimento dos sacrifícios que fizemos e daqueles que ainda estamos dispostos a fazer. (…) A existência de uma nação é (perdoem-me esta metáfora) um plebiscito cotidiano, como a existência do indivíduo é uma perpétua afirmação de vida.[1]

Corpus simbólico incerto, tão sujeito às intempéries do tempo quanto os corpos finitos de seus cidadãos, a nação se revela uma utopia eterna, um projeto a ser renovado continuamente. O êxito da iniciativa, contudo, não é nada certo, pois, além de cotidiano, o plebiscito exige um exercício nem tanto de memória quanto de olvido. A delicada operação é sublinhada pela decisão tomada pelo próprio Renan:

Ora, a essência de uma nação é que todos os indivíduos tenham muitas coisas em comum, e também que todos tenham esquecido muitas coisas. Nenhum cidadão francês sabe se ele é burgúndio, alano, taifale, visigodo; todo cidadão francês precisa ter esquecido São Bartolomeu, os massacres do Sul no século XIII.[2]

Numa ironia involuntária, a prosa ensaística de Renan fornece o exemplo definitivo de sua terapêutica para a formação do sentimento nacional, isto é, deixar de recordar as desigualdades da formação social, as arbitrariedades do processo histórico, as violências inerentes às estruturas de poder. Tudo se esclarece na escolha da matéria a ser esquecida. Ora, apenas 11 anos antes de proferir sua palestra, a história contemporânea francesa havia conhecido dois grandes traumas: a derrota humilhante no conflito franco-prussiano e a eclosão e sobretudo o extermínio brutal da Comuna de Paris. Cuidadoso, o autor de Vie de Jésus (1863) localizou seu modelo de esquecimento necessário nos distantes séculos 16 e 13.

A fórmula de Renan, de fato, tornou-se dominante. No século seguinte, na Alemanha, no pós-Segunda Grande Guerra, especialmente na longa Chancelaria de Konrad Adenauer (1949-1963), a reconstrução do país implicou um difícil acordo tácito: no esforço de retomada do desenvolvimento, como prescindir de engenheiros, médicos, advogados, arquitetos, professores, ou seja, profissionais de especialidades diversas, que obrigatoriamente atravessaram o período nazista e que não necessariamente foram críticos do regime hitlerista. O que fazer? Aplicar a equação de Renan e passar uma borracha no passado imediato, de modo a incorporá-los ao esforço do pós-guerra. A revolta estudantil de 1968 em boa medida foi estimulada pela recusa das gerações mais jovens a seguir nesse jogo de faz de conta: o acerto de contas com o passado recente tornou-se tão necessário quanto inquietante.

No Brasil, vivemos uma experiência similar e que ainda hoje enreda o país numa institucionalidade democrática que permanece à sombra de uma militarizada espada de Dâmocles. A redemocratização, após o estabelecimento da ditadura civil-militar em 1964, foi realizada tendo como premissa outro acordo tácito; no caso, era preciso “olvidar” que as Forças Armadas adotaram a tortura, a execução e a ocultação de cadáveres de adversários como forma de repressão tanto da guerrilha armada quanto de toda e qualquer forma de oposição ao regime militar. A coragem da ex-presidente Dilma Rousseff ao patrocinar o estabelecimento efetivo da Comissão Nacional da Verdade (CNV), sustentando politicamente a consecução de seus trabalhos, foi o fato determinante para que um medíocre deputado exótico do baixo clero, Jair Messias Bolsonaro, fosse, pela primeira vez, visto pelo alto oficialato das Forças Armadas como um possível aliado. Antes desprezado como um mau militar, na expressão sincera de Ernesto Geisel,[3] a oposição firme do deputado Bolsonaro à CNV fez com que o Exército decidisse “esquecer” que ele havia sido reformado para não ser expulso em desonra. A Nova República nasceu submetida a esse compromisso. Em alguma medida, ele mantém a democracia brasileira refém do humor das Forças Armadas: precisamos romper com essa acomodação ou não teremos uma democracia realmente sólida.

Midiosfera bolsonarista: o desafio maior à democracia
Impõe-se, por isso mesmo, uma avaliação cuidadosa das estratégias empregadas pela extrema-direita para chegar ao poder em todo o mundo, não apenas no Brasil. Se não abrirmos os olhos para a centralidade da guerra cultural no governo Bolsonaro, dificilmente será possível desenvolver um plano de ação capaz de fazer frente à poderosa midiosfera bolsonarista, isto é, o sistema de comunicação que dá sustentação ao projeto político autoritário, cuja ponta de lança é precisamente a guerra cultural.

Não seria exagero afirmar que a midiosfera bolsonarista é um fenômeno inédito na vida política e cultural brasileira. Ou levamos muito a sério seu alcance ou não saberemos dimensionar o efeito grave de criação de uma autêntica realidade paralela, que, pela primeira vez, se tornou um ator político relevante, talvez mesmo decisivo, na vida nacional.

Mas o que é a midiosfera bolsonarista? Trata-se de um circuito integrado de desinformação metódica, com base na fabricação incessante de notícias falsas e de teorias conspiratórias, cuja finalidade é a criação contínua, vertiginosa até, de narrativas polarizadoras que mantêm as massas digitais bolsonaristas em mobilização permanente.

Na prática, no dia a dia, como funciona essa midiosfera? Ela é composta de quatro elementos internos e um quinto, externo.

Em primeiro lugar, destaca-se o WhatsApp e suas correntes multitudinárias, cujo efeito na arena política foi suficientemente demonstrado nas eleições presidenciais de 2018 com a difusão de milhões de disparos da notícia falsa mais bem-sucedida daquele pleito: a “mamadeira erótica”, sinal da “associação” entre esquerda e pedofilia, como trombetearam as apocalípticas massas digitais bolsonaristas. Aliás, este tema absurdo certamente retornará com força na midiosfera bolsonarista nas eleições em 2022 e, muito provavelmente, neste ano de 2021, aqui e ali haverá balões de ensaio de difusão dessa notícia falsa, a fim de preparar o terreno, ou seja, a fim de “naturalizar” o delírio até torná-lo, num primeiro momento, palatável, e, logo a seguir, expressão inequívoca de uma “realidade” — paralela que seja, mas potencialmente muito efetiva numa campanha eleitoral, dado seu efeito imediato. Basta pensar no fantasioso “kit gay”, peça de propaganda indissociável da ascensão de Bolsonaro rumo ao Planalto. Ademais, o caráter audiovisual do aplicativo foi decisivo na sua adoção pela maior parte da população. Hoje, o Brasil ocupa o segundo lugar no mundo em usuários do WhatsApp, apenas atrás da Índia.

Nesse mesmo horizonte, vale ressaltar um dado preocupante: a teoria conspiratória que tanto estragos tem provocado nos Estados Unidos, o delírio da narrativa QAnon, deverá desempenhar um papel na política brasileira, a menos que estejamos prontos para reagir a tempo. O campo da esquerda precisa apreender o caráter imediato do tempo político da era digital para desenvolver formas adequadas de ação. A extrema-direita, em todo o mundo, e no Brasil em particular, encontra-se na vanguarda no que diz respeito ao emprego político das possibilidades abertas pelo universo digital e pelo mundo das redes sociais. Reverter esse quadro é simplesmente decisivo para a defesa da democracia.

O segundo elemento da midiosfera bolsonarista, intrinsecamente relacionado às correntes de WhatsApp, refere-se a um impressionante circuito integrado de canais de YouTube, que produzem ininterruptamente conteúdo político e “cultural” de apoio ao governo Bolsonaro — seja apoio explícito, seja subliminar. Boa parte desse conteúdo também é difundido por meio do WhatsApp. A mera quantidade desses canais, e a grande repercussão que alcançam, atingindo milhões de pessoas todos os dias, numa completa perversão do princípio de Ernst Renan, é um dos principais pilares de sustentação do bolsonarismo. Não é mais a nação que se legitima no dia a dia, porém a democracia que é minada diariamente nesse moto perpétuo de desinformação.

O terceiro elemento remete às redes sociais. Aqui, um reconhecimento se impõe: muito antes do campo da esquerda, o bolsonarismo compreendeu a centralidade das ágoras virtuais na arena política na época de sua reprodutibilidade digital. Em 2018, com exceção da campanha de Jair Messias Bolsonaro, os demais candidatos claramente se encontravam num mundo analógico. No próximo ano, ou o campo da esquerda aprende a dominar o mundo novo da política na era digital ou as dificuldades serão ainda maiores do que em 2018; afinal, o bolsonarismo detém a máquina do governo, com todos os recursos disponíveis — e, além do domínio sobre a comunidade de informações, busca manietar a Polícia Federal, amplia sua influência em áreas significativas do Poder Judiciário e, fato ainda mais preocupante, exerce uma ascendência crescente sobre as Polícias Estaduais. Tal cenário é muito mais grave do que a malograda invasão do Capitólio, em Washington, no dia 6 de janeiro de 2021, na fracassada tentativa de golpe de estado, orquestrada pelo derrotado Donald Trump.

Por fim, é importante sublinhar a relevância de aplicativos como, por exemplo, Mano, divulgado por ninguém menos do que Flávio Bolsonaro. Mano coloca à disposição do usuário, gratuitamente, um grande número de estações de rádio e de canais de televisão. Ao acessar qualquer opção, o usuário é conduzido para uma caixa de diálogo, num simulacro de WhatsApp, na qual invariavelmente o conteúdo é de apoio irrestrito ao governo Bolsonaro.

Esses quatro elementos formam a midiosfera propriamente bolsonarista, responsável pela criação de uma autêntica realidade paralela; efeito que conduz ao caos cognitivo definidor de sua visão do mundo.

Há um quinto elemento, externo, que desempenha o papel lamentável de dar espaço à difusão de notícias falsas e de teorias conspiratórias. Penso em segmentos da mídia tradicional: ao convidarem representantes bolsonaristas desse sistema de desinformação, conferem credibilidade a seus delírios, pois são escutados com incompreensível reverência, e seus dados, claramente manipulados, nunca são sequer questionados. Agora, com esse inesperado “selo de qualidade”, as narrativas polarizadoras retornam à midiosfera bolsonarista como retrato fiel da “realidade”, pois, se chegaram até à “extrema-imprensa”, “furando a bolha progressista”, na novilíngua bolsonarista, devem mesmo ser a verdade absoluta. O transtorno psíquico provocado por esse círculo vicioso é devastador, constituindo o maior laboratório mundial de dissonância cognitiva do século 21, cuja única comparação possível remete ao fanatismo dos seguidores de Donald Trump.

Há mais.

A guerra cultural conhece atualmente uma inflexão nova e extremamente perigosa: não se trata mais de “limitar-se” a disputar narrativas no período eleitoral. Pelo contrário, a guerra cultural convertese uma forma de vida! Além de disputar narrativas, é preciso tomar overdoses de ivermectina como se não houvesse amanhã, tampouco sistema hepático; é necessário venerar a cloroquina como se fosse uma hóstia profana; por fim, aglomerar, claro, sem máscara, é condição imprescindível para qualificar-se como fiel bolsonarista. E não se esqueça: é obrigatório ignorar a “Globo-lixo”, a “CNN-lixo” e toda a “extrema-imprensa”, de modo a “informar-se” exclusivamente na própria midiosfera bolsonarista, que, aliás, produz conteúdo sem trégua.

O círculo se fecha e a realidade paralela se torna a respiração artificial das massas digitais bolsonaristas. Nunca enfrentamos algo similar na cultura brasileira. Eis a dimensão exata do desafio que nos aguarda em 2022.

(E o Brasil se torna o maior laboratório mundial de dissonância cognitiva — conceito que discutirei na próxima coluna.)

[1] Ernst Renan. “O que é uma nação?”. In: Maria Helena Rouanet (tradução e organização). Nacionalidade em questão. Cadernos da Pós/Letras, 19, 1997, p. 40.

[2] Idem, p. 20.

[3] “Não contemos o Bolsonaro, porque o Bolsonaro é um caso completamente fora do normal, inclusive um mau militar”. Maria Celina D’Araújo e Celso Castro (orgs.). Ernesto Geisel. Rio de Janeiro: Editora Fundação Getúlio Vargas, 1998, 5ª edição, p. 113, grifos meus.

 

João Cezar de Castro Rocha

É professor de Literatura Comparada da UERJ. Autor de Exercícios críticos: Leituras do contemporâneo e Crítica literária: em busca do tempo perdido?, entre outros.

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