Um dilema constitutivo
O manifesto, como gênero literário, representa um dos mais importantes legados das vanguardas no enfrentamento do dilema constitutivo das culturas latino-americanas. A virtual onipresença do gênero e o caráter incisivo de sua performance favorecem sua centralidade. Na definição exata de Mary Lorenzo Alcalá:
No Ocidente todo, as vanguardas fizeram uso de uma fórmula expressiva, o manifesto, que se articula perfeitamente com suas características de movimentos militantes, polêmicos e fugazes.
Pela própria essência, o manifesto é panfletário e tem uma estrutura literária telegráfica, contundente e sonora. Tende mais a sacudir do que a obrigar a reflexão, nascendo de um elaboração consciente e carregada de intencionalidade.[1]
A pulsão agônica das vanguardas já se encontra na etimologia da palavra. O termo tem origem militar e se refere à primeira linha de uma tropa de combate, cuja função é a de abrir uma cunha na formação inimiga. Nesse sentido, as revistas, os festivais, os manifestos equivaliam, e não apenas metaforicamente, a armas empunhadas pelos artistas em seu afã de transgressão. E com idêntica função, qual seja, abrir brechas no edifício da tradição. As polêmicas, autêntica respiração artificial das vanguardas, correspondiam ao desejo de superação rápida e mesmo violenta do passado. O espírito bélico da vanguarda artística se esclarece numa consulta ao programa exposto no Fondazione e Manifesto del Futurismo, publicado em 20 de fevereiro de 1909, no jornal francês Le Figaro:
7. Não há mais beleza senão na luta. Nada de obra-prima sem um caráter agressivo. A poesia deve ser um assalto violento contra as forças desconhecidas, para intimá-las a deitar-se diante do homem.
(…)
10. Nós queremos destruir os museus, as bibliotecas, combater o moralismo, o feminismo e todas as covardias oportunistas e utilitárias.[2]
Nesse espírito, não surpreende que o futurismo tenha glorificado a guerra e muito celeremente tenha se associado ao fascismo. De igual modo, compreende-se que a relação das vanguardas latino-americanas com o Futurismo tenha sido intensa, pois se tratava da primeira vanguarda organizada do século 20, cujos métodos foram reciclados por muitos outros grupos, e, sobretudo, tensa, e não apenas pelas implicações políticas, mas também pela necessidade de descobrir caminhos próprios, em lugar de mimetizar as soluções das vanguardas históricas europeias. Na avaliação exata de Jorge Schwartz:
As vanguardas latino-americanas criticaram ou refutaram de forma unânime o futurismo italiano — em especial, após a Primeira Guerra, quando o apoio de Marinetti ao fascismo tornou-se mais ostensivo. Mesmo assim elas têm uma dívida inegável para com a ideologia da escola italiana: a refutação dos valores do passado e uma aposta na renovação radical.[3]
No caso brasileiro, o conflito explodiu na viagem de Marinetti à América do Sul em 1926; afinal, no fundo, o futurismo foi uma pedra no meio do caminho da Semana de Arte Moderna, que poderia ter sido chamada de Semana de Arte Futurista. No Jornal do Commercio, em 27 de maio de 1921, Oswald de Andrade apresentou a poesia de Mário de Andrade num artigo controverso e com um título sintomático, O meu poeta futurista. Mário, de imediato, recusou a etiqueta, publicando uma resposta, cujo título já indicava sua contrariedade, Futurista?. O texto saiu no mesmo Jornal do Commercio, em 6 de junho de 1921.
Em todo o caso, a simples associação proposta por Oswald revelava o clima da época. Ademais, o modelo do festival de três noites ocorrido em São Paulo, em fevereiro de 1922, foi livremente inspirado nas célebres serate futuriste. No Manifesto da Poesia Pau-Brasil, publicado no Correio da Manhã, em 18 de março de 1924, o movimento italiano é mencionado duas vezes. No início do “Manifesto”, Oswald de Andrade divide o mundo das artes com corte afiado:
Não há luta na terra da vocação acadêmica. Há só fardas. Os futuristas e os outros.[4]
Passagem cristalina: os “outros” são os acadêmicos fardados, imagem de uma tradição anquilosada; já os futuristas seriam os modernistas brasileiros, engajados na renovação da cultura, em geral, e das artes, em particular. Contudo, tal paralelo, mesmo pelo seu automatismo, poderia colocar em xeque nada menos do que a autonomia das vanguardas periféricas, não hegemônicas. Essa questão, na verdade, é constitutiva das culturas latino-americanas. Uma alternativa, no entanto, esboça-se na segunda menção ao movimento inaugurado por Marinetti. Podemos assim tanto aquilatar melhor o gesto oswaldiano, quanto esclarecer o legado mais importante do gênero literário do manifesto nas culturas latino-americanas. Estamos próximos do final do Manifesto da Poesia Pau-Brasil:
O trabalho da geração futurista foi ciclópico. Acertar o relógio império da literatura nacional.
Realizada essa etapa, o problema é outro. Ser regional e puro em sua época.
Outra vez, a afirmação é direta: o futurismo, pela sua aversão pela tradição, foi importante como um primeiro passo estratégico; no momento seguinte, contudo, “o problema é outro”, e sua caracterização fere justamente o dilema mencionado por Jorge Schwartz: “Ser regional e ser puro em sua época”. O fermento alheio não seria mero espelho, porém, meio privilegiado para a formulação de uma obra própria e, aqui, a reiteração se impõe: eis aí o dilema constitutivo das culturas latino-americanas. Esse fenômeno da onipresença de elementos do futurismo nos mais diversos grupos foi bem descrito por Renato Poggioli: “O momento futurista pertence a todos os grupos de vanguarda e não apenas ao futurismo italiano”.[5] Rejeição radical do passado: essa era a real significação do futurismo para boa parte das vanguardas, e não somente as latino-americanas. A adoção do termo “futurismo” servia como uma maneira de distanciar-se da tradição, sem necessariamente implicar adesão aos postulados do movimento.
Estética onívora, autêntica poética da emulação, que resolve com rara argúcia o dilema das culturas não hegemônicas. Agora, o influxo externo deixa de ser constrangedor, pois, pelo contrário, celebra-se a pluralidade que constitui a perspectiva de quem se nutre de tão vasto cardápio. Vale dizer, quanto maior a contribuição milionária da alteridade, mais rica será a síntese a ser realizada. No limite, a síntese converte-se na novidade mais assinalável. Em linguagem oswaldiana, só o que se pode demandar de qualquer viajante, cujo destino é a viagem em si mesma, é manter os “olhos livres” para o acaso e para o imprevisto. Navegar é preciso, porém, navegar à deriva é a vocação do artista.
Isto é, nos termos do Manifesto antropófago:
Roteiros. Roteiros. Roteiros. Roteiros. Roteiros. Roteiros. Roteiros.
Devoração, devoração, devoração
Não seria equivocado considerar que o gênero manifesto deu uma contribuição efetiva para virar de ponta cabeça o que parecia ser o dilema insuperável na constituição das culturas latino-americanas: como pensar numa formulação própria se até o idioma para sua expressão é alheio? Ou, pelo menos, foi inicialmente imposto? O desafio da mímesis atravessou séculos da história cultural do continente e alcançou um nível inédito de tensão nos movimentos de vanguarda, sobretudo na década de 1920.
Entende-se bem o motivo!
Ora, como abraçar um movimento transgressor, cujo eixo é justamente a recusa de um modelo incontestável, ou seja, a tradição, e, ao mesmo tempo, submeter-se sem mais às regras das vanguardas europeias? Para dizê-lo brutalmente: como transgredir seguindo o passo a passo de um manual de instruções, e sempre escrito em línguas estrangeiras?
Não houve grupo de vanguarda que tenha negligenciado a urgência de perguntas similares. Por isso mesmo, os manifestos mais instigantes, e que seguem atraindo atenção ainda hoje, são aqueles que inventaram formas inspiradas de lidar com a centralidade do outro na determinação da cultura.
Claro: nesse contexto, o Manifesto antropófago destaca-se, pois sua fórmula feliz — “Só me interessa o que não é meu. Lei do homem. Lei do antropófago” — tornou-se uma forma de pensamento e um gesto estético que metamorfosearam o dilema em potência, e o impasse em promessa de renovação.
Ironia final: gênero agônico por excelência, polêmico por definição, conflituoso por traço estilístico, nas vanguardas latino-americanas, o manifesto encontrou sua convergência na invenção de um modo de lidar com a centralidade do outro.
Uma contradição com o próprio gênero, alguém poderia supor.
Mas, aqui, seria o caso duma felix culpa — reconheça-se.
Notas
[1] Mary Lorenzo Alcalá. “Os textos programáticos”. In: Mary Lorenzo Alcalá & Jorge Schwartz (orgs.). Vanguardas argentinas. Anos 20. São Paulo: Iluminuras, 1992, p. 23.
[2] F. T. Marinetti. “O Futurismo”. In: Gilberto Mendonça Teles, op. cit., p. 92.
[3] Jorge Schwartz. “Introdução”. In: Jorge Schwartz (org.). Vanguardas latino–americanas. Polêmicas, manifestos e textos críticos. São Paulo: Iluminuras/EdUSP/FAPESP, 1995, p. 40.
[4] Oswald de Andrade. “Manifesto da Poesia Pau-Brasil”. In: Oswald de Andrade. A utopia antropofágica. Prefácio de Benedito Nunes. São Paulo: Editora Globo, 1990, p. 42. Nas próximas citações, apenas indicarei o número da página.
[5] Renato Poggioli. The Avant–garde Theory. Cambridge: Harvard University Press, 1988, p. 68.