La camioneta. Ou: as viagens de Edward Said (1)

Assim como pessoas e correntes críticas, ideias e teorias viajam — de pessoa a pessoa, de contexto a contexto, de uma época para outra
Edward Said, autor do polêmico ensaio “Traveling theory”
19/09/2020

Um ônibus nas alturas
Você pegou o ônibus literalmente nas alturas de um longo voo transatlântico. Como sempre, você se manteve fiel ao hábito: assegurar um assento de corredor, tirar os sapatos, acomodar-se como pode, avaliar o espaço de que não dispõe e começar a ler — ou a escrever. Claro, até a hora do jantar, quando a única alternativa é escolher um filme para disfarçar o incômodo.

“Filmes do Mundo”: assim prometia a opção.

Um título chama sua atenção. Trata-se de um documentário; segundo a sinopse, a história de um school bus norte-americano transformado em ônibus de transporte público em países latino-americanos: La Camioneta,[1] de Mark Kendall. Um ensaio de Edward Said vem de imediato à lembrança. Você fecha os olhos. O milimétrico jantar promete!

(Poucas vezes você se comoveu tanto diante da tela do avião — tela com polegadas medida. E se surpreende. Como entender a intensidade de sua emoção?)

Teorias em trânsito
Em 1982, Edward Said publicou um ensaio tão influente quanto polêmico, Traveling Theory. A abertura do texto esclarece a questão-chave que inquietava o crítico: “Assim como pessoas e correntes críticas, ideias e teorias viajam — de pessoa a pessoa, de contexto a contexto, de uma época para outra”.[2]

A análise de Said é severa: em sua alfândega imaginária, o preço que se paga pelo deslocamento é muito alto; no fundo, proibitivo, pois do destino à chegada sempre se perde o que mais importaria preservar. A teoria da reificação de Georg Lukács, tal como desenvolvida em História e consciência de classe (1923), favorece o estudo de caso para a reflexão do crítico. Em especial, Said se debruça sobre as apropriações do conceito de reificação por Lucien Goldmann, em Le dieu caché (1953), e por Raymond Williams no conjunto de sua obra, e mais particularmente em Problems in materialism and culture (1980).

Sem deixar de reconhecer a relevância e a agudeza da contribuição de Goldmann e Williams, ainda assim, o Said de 1982…

(Como? O Said de 1982? Calma: em 1994, Said revisitou a hipótese apresentada na década de 1980. Na próxima coluna, voltarei a esse ponto, trazendo à discussão Traveling theory reconsidered; se eu esquecer, me cobre.)

Dizia, antes de sua justa interrupção: ainda assim, o Said de 1982 é implacável: sequestrada de seu espaço original, a teoria, por assim dizer, fora de lugar, tem subtraída a vitalidade que era assegurada pelo atrito com as circunstâncias de sua elaboração. Pense no Lukács do final da década de 1910 e do início do decênio seguinte. Nesse conturbado período, o mundo virou de ponta-cabeça.

Não exagero.

O atrito como método
A Primeira Guerra Mundial (1914-1918) levou à reordenação da ordem mundial e ao colapso do modelo então dominante da democracia liberal, incapaz de incluir a emergência das massas urbanas em seus rígidos sistemas eleitorais censitários. Na verdade, a democracia liberal era uma bem azeitada máquina de exclusão política; no Brasil, esse arranjo oligárquico correspondeu à ordem estabelecida pela República Velha (1889-1930).

A Grande Guerra que seria, no título célebre de H. G. Wells, The war that will end war (1914), não pôde senão provocar novas explosões de violência. No campo da esquerda, a eclosão do conflito produziu um terremoto, cujas vibrações afetaram diretamente o pensamento do filósofo húngaro.

Criada em 1889, por iniciativa de Friedrich Engels, a dissolução da Segunda Internacional em 1916 sintetizou a divergência que se mostrou decisiva. Ora, em tese, a decisão da Internacional tinha sido cristalina: em caso de eclosão da guerra, os trabalhadores, internacionalistas por consciência de classe, em lugar de aderirem a um pertencimento automático à nação, decretariam uma greve geral de caráter transnacional, idealmente acelerando processos revolucionários em toda a Europa. Contudo, a realidade da guerra frustrou os planos da Segunda Internacional, que se viu subvertida em seus princípios pelo entusiasmo nacionalista dos operários em seus respectivos países.

Em 1917 a Revolução Bolchevique estimulou experiências revolucionárias, com destaque para o caso alemão. Em 1918-1919, por meio da Liga Espartaquista, liderada entre outros nomes por Rosa Luxemburgo, obteve-se a abolição da Monarquia e a instalação da República de Weimar. Por um breve período de tempo, estabeleceu-se a República Socialista da Baviera, também conhecida como a República Soviética de Munique. Os revolucionários mantiveram o poder de novembro de 1918 a maio do ano seguinte. A repressão, porém, foi feroz e, em Berlim, em janeiro de 1919, Rosa Luxemburgo e Karl Liebknecht foram brutalmente assassinados por grupos paramilitares de direita.

Na Hungria de Lukács, a radicalização política também esteve presente e teve consequências profundas. Em 21 de março de 1919, proclamou-se a República Soviética da Hungria, sob a orientação de Béla Kun e com apoio da União Soviética. O autor de A teoria do romance (1920) ocupou nada menos do que o cargo de Ministro da Cultura. No entanto, no dia 1º de agosto o governo de Béla Kun foi deposto e interrompido o experimento comunista.

Reificação numa terra em transe
A atividade revolucionária, digamos, concreta, de Lukács desempenhou um papel central na perspectiva de Said sobre o destino pálido de uma traveling theory.

Você me dirá se tenho razão:

História e consciência de classe (1923), de Lukács, é justamente célebre por sua análise do fenômeno da reificação, uma condição universal que atinge todos os aspectos da vida numa era dominada pelo fetichismo da mercadoria.

(…)

Há, contudo, uma forma de experiência que representa concretamente tanto a essência da reificação quanto seu limite: crise (grifos meus, p. 199-200).

Crise: palavra-imã que condensa e contém a complexidade e, por que não?, a perplexidade do momento histórico do pós-Primeira Guerra Mundial. A formulação do conceito de reificação ocorreu numa circunstância particularmente agônica. Em outras palavras, a filosofia lukacsiana elaborava, criticamente, um momento ímpar de crise. Pelo contrário, a viagem de sua teoria ao porto seguro das elucubrações universitárias provocaria necessariamente a perda do vigor de sua gênese, definida pelo desassossego.

Said não fez questão de ser sutil! Lucien Goldmann, “aluno e discípulo de Lukács”, escreve como “um acadêmico politicamente engajado”, mas nunca como “um militante diretamente envolvido” (p. 203). E para ter certeza de que a diferença será sublinhada, completou: “A Hungria de 1919 e Paris do pós-Segunda Guerra Mundial são contextos muito diversos” (p. 205). O trânsito erudito do conceito de reificação não deixaria de ser uma ilustração involuntária da força da intuição de Lukács; ilustração involuntária e perversa, pois agora é o próprio conceito que se vê reificado, no fetichismo acrítico da devoração onívora, e por isso apaziguadora, das ideias no mercado simbólico.

Raciocínio similar acompanhou a leitura acre do esforço de Raymond Williams; afinal, “Cambridge não é a Budapeste revolucionária”, e, sobretudo, “Williams não é o militante Lukács, [mas] um crítico reflexivo” (p. 207). Fora do lugar de origem, ao que tudo indica, a teoria termina sendo domesticada — e a palavra é enfatizada por Said. Uma pitada de crueldade fecha a conta: “É preciso dizer que as ideias [de Lukács] foram originalmente formuladas com o objetivo de realizar mais do que abalar alguns poucos professores de literatura” (idem).

(De school bus a la camioneta: que tipo de viagem seria essa?)

Viagem sem mapa?
Você demorou a conciliar o descanso com a emoção. Você ainda não sabia, mas as imagens do documentário permanecerão em sua memória.

A viagem foi longa: aproximadamente 11 horas; além do translado para a cidade na qual você fará a palestra de encerramento de um congresso na Universidade de Cambridge. Você será o keynote speaker, como dizem. Não é a primeira vez, porém você está ansiosa. Muito. Tinha acabado de publicar um livro propondo uma teoria nova sobre relações culturais em contextos assimétricos. Seria sua primeira apresentação da teoria em inglês.

A apreensão era inevitável. Mesmo em português, o fracasso é uma possibilidade real: como saber se a palavra não faltará ou se o argumento, ao ser exposto, não passará de uma banalidade, constrangedoramente disfarçada com citações?

Não é tudo.

Sejamos honestos: não se espera que viajemos para oferecer teorias, mas, em geral, para importá-las. Oswald de Andrade imaginou uma poesia de exportação; audácia ainda maior seria conceber uma teoria de exportação.

(Oswald deu o pulo do gato com a antropofagia — claro está.)

Como seria o documentário se o percurso fosse o avesso? Isto é, se la camioneta saísse da Guatemala para ser convertida em school bus nos Estados Unidos?

O que pensaria Edward Said dessa inversão?

(Como? Guatemala?)

Como sempre, você tem razão: coloco a Guatemala na frente do filme. Na próxima coluna, tratarei de La camioneta.[3]

Aproveite para assistir ao documentário — uma autêntica viagem.

 

NOTAS

[1] Eis a página oficial do filme: https://lacamionetafilm.com/.

[2] Edward Said. “Traveling Theory”. Moustafa Bayoumi & Andrew Rubin (orgs.). The Edward Said Reader. New York: Vintage Books, 2000, p. 195.

[3] O filme pode ser visto aqui: https://www.youtube.com/watch?v=dkVXSem54qU.

 

 

João Cezar de Castro Rocha

É professor de Literatura Comparada da UERJ. Autor de Exercícios críticos: Leituras do contemporâneo e Crítica literária: em busca do tempo perdido?, entre outros.

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